TRANSE

Pessoal:

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A estratégia zumbi e o fim de um projeto

O Governo Dilma acabou. Sei que muitos amigos irão ficar irritados com a minha afirmação, talvez até dizendo que colaboro com o golpismo, mas nesse caso estariam apenas matando o mensageiro. Não vibro com isso: sempre torço para estar errado nos meus diagnósticos e prognósticos pessimistas, ainda mais considerando que milhões de brasileiras e brasileiros votaram em Dilma Rousseff. O fim do governo é simplesmente um fato. É impossível executar um projeto sem a mínima base política. E o governo atual não tem, simplesmente, base política. Não adianta chamar de burros ou coxinhas os detratores. É gente demais para caber no rótulo. Obviamente, há muita gente burra e muitos coxinhas fazendo a festa, aproveitando a crise política para defender ideias estapafúrdias como a volta da ditadura ou destruir as conquistas em termos de direitos civis da Nova República. São muitos, mas é demais generalizar. É muita gente contra. Ontem mesmo foi publicada pesquisa dizendo que, entre os petistas, 40% considera o governo péssimo ou ruim.1 em cada 3 petistas admite o impeachment.

Dilma continua erraticamente usando exatamente a mesma estratégia que usou nos últimos anos, com destaque para as últimas eleições: pratica um jogo ambivalente em que toma medidas que agradam os setores mais poderosos da sociedade, buscando uma trégua, enquanto deixa seus pittbulls da mídia governista comandarem a militância usando a retórica do “nós” contra “eles”. Essa estratégia ficou clara quando vazou o memorando no qual os “blogs progressistas” são considerados carros-chefe da comunicação do Planalto. Evidentemente, está completamente equivocada, pois o lado beneficiado não se reconhece como tal na medida em que é atacado discursivamente como “o inimigo” e ao mesmo tempo tampouco tem qualquer simpatia pelo governo. Do outro lado, aqueles que o sustentam discursivamente se veem o tempo todo desmentidos pelos fatos, sem poder alegar a favor do seu discurso nada a não ser uma noção substancialista de identidade de esquerda que residiria na estrela petista. Quanto mais aumentam as concessões, mais forte fica o outro lado, que por sua vez sempre acha pouco o concedido e passa a atacar — agora, com a queda de popularidade — a fim de se colocar na cabeça do programa. Do outro lado, minguam as justificativas dos apoiadores, constantemente vendo-se constrangidos com escolhas como Kátia Abreu e Eliseu Padilha, e quanto mais defendem mais podem ter certeza de que o governo fará menos para ajudá-los a demonstrar seus argumentos. É incrível como algo que vem dando errado há tanto tempo – desde 2013, pelo menos — continua sendo repetido ad nauseam, sem que haja qualquer sinal de mudança de rumo. Não adianta dez milhões de pessoas dizerem que a estratégia está toda errada, ela vai se repetir até o fim. Passo a chamar, a partir de agora, de estratégia zumbi.

Não existe qualquer chance de uma “virada à esquerda”, como alguns crédulos continuam sustentando. Não existe fundamentalmente por duas razões, uma conjuntural e outra estrutural. A conjuntural: o PT não teria cacife político para bancar, hoje, uma virada dessas. A esquerda está totalmente dilacerada e fragmentada por múltiplas razões e por isso não teria condições de apoiar consistentemente uma iniciativa dessas. Além disso, a maioria da sociedade não é de esquerda, e — importante dizer isso — nem de direita, ao menos não no sentido forte. Se é verdade que a maioria pende ao conservadorismo, isso não quer dizer que a maioria esteja afinada ideologicamente com a direita. A maioria simplesmente segue aquilo que pragmaticamente, nas circunstâncias, parece melhor para si. O próprio PT provou isso com a ampla maioria conquistada no apogeu do lulismo. Naquele momento, com 80% de aprovação, apareceu o verdadeiro tamanho da “direita”, que é mais ou menos o mesmo da “esquerda” propriamente dita. Esses rótulos, que envolvem a formação de identidade ultrapolitizada, não formam uma massa consistente no bolo geral da sociedade. Aliás, esse foi o duplo erro cometido pelo PT e depois por segmentos que sustentaram o legado de Junho: investir na identidade de esquerda e polarizar a sociedade em duas substâncias, como se não existisse entre elas uma fatia permeável que varia sua posição conforme as circunstâncias. A virada para a extrema esquerda dos movimentos provocou a diminuição do seu tamanho, voltando ao âmbito de organizações de pressão que podem vencer uma ou outra disputa, mas não consegue metonimicamente tomar o lugar do “povo”, ou do que se queira colocar ali. O discurso petista que recrudesceu a partir de 2006, com o “nós” contra “eles” eleitoral, acabou conduzindo o país a um extremismo que hoje pende para a oposição. Quase ninguém mais quer estar do lado do “nós” governista.

A razão estrutural é que o PT não ocupa mais esse lugar de fato. O que chamamos de PT hoje é um bloco dividido entre uma direção vertical, burocrática e autoritária que toma as decisões e uma militância de longa estrada que permanece presa nos sonhos de progresso social nutridos ao longo das últimas três décadas. A primeira parte é totalmente determinante em termos de ação. O PT é comandado de cima. O ponto de inflexão dessa mudança não foi — como sustentam alguns — a “Carta aos Brasileiros”, de 2002. Ali, havia muita coisa em aberto e talvez a solução encontrada pelo lulismo tenha sido uma saída inteligente para a eterna aporia do “como governar pela esquerda?”. Enfim, há quem pense diferente. No entanto, o certo é que 2013 — no auge da popularidade — o PT preferiu fazer parte da constelação pemedebista ao aliar-se ao baixo clero da política e desperdiçar a chance de enfrentar e servir de referência para a transformação do sistema. A ferida do Mensalão, julgado pouco tempo antes da emergência dos movimentos, colocou o petismo em posição reativa e desprezou a potência que despertava em 2013. Hoje, esse baixo clero da política — que por vezes eu e outros comparamos ao escorpião da fábula — hoje não precisa mais estar aliado a uma cabeça (nomeada na época por Marcos Nobre de “síndica” do condomínio pemedebista) que era tolerada devido aos altos índices de popularidade. Para realizar essa manobra, o governo do PT se desconectou das bases sociais emergentes do próprio lulismo e tornou-se definitivamente uma tecnocracia que comanda “desde cima” a sociedade, perdendo base política (hoje reduzida ao “proletariado” tradicional do capitalismo fordista que fora essencial para sua formação). Sem essa sustentação, desprezada arrogantemente pelo governismo, não há lastro político para um enfrentamento direto das oligarquias políticas e econômicas. O nível de barganha acabou e o que resta, então, é exatamente esse corpo isolado que jaz no Palácio do Planalto.

A questão hoje para o Governo é apenas como terminar o mandato. A formação de um gabinete de crise, com Lula talvez ocupando uma posição de protagonista, é a última carta na manga que resta, mas ela não terá a força de ressuscitar o PT, apenas de prorrogar uma sobrevida até 2018. Uma derrota esmagadora cultivada a partir da estratégia zumbi. A escuta que nos últimos tempos tem pautado as notícias sobre o Planalto são absolutamente insuficientes diante da surdez que predominou nos últimos anos.

Está claro que se a esquerda brasileira quer continuar viável, é necessário enfrentar o PT como parte do que está errado. O “voto crítico” das últimas eleições, ao bloquear a alternativa Marina Silva como saída do lulismo e sustentar, apesar de tudo, todos os erros que vem sendo praticados há longos anos é o último bastião da resistência governista. Mas é preciso que as pessoas que estão nessa posição — muitas respeitáveis, muitos amigos e pessoas que respeito — percebam que estão afundando a esquerda como um todo ao lado do PT. Quanto maior a insistência, maior é a captura dos afetos políticos por tendências conservadoras e maior o risco de se ver desmoronar alicerces institucionais importantes que — para além do PT — fizeram do Brasil um país um pouco menos indecente em relação à cidadania. Na Espanha, a ascensão dos indignados gerou o efeito imediato de eleger um governo conservador. Hoje, contudo, vê-se a “aposta municipalista” como um processo descentralizado de construção de um novo modelo de experimentação política e social. Para isso foi necessário se livrar de velhos fantasmas, sair da zona de segurança na qual o governismo crítico se instala toda vez que se vê confrontado pela direita.

O Brasil está próximo de eleições municipais. Quais são as alternativas que estão sendo gestadas para a construção de um novo projeto coletivo depois que o lulismo ruiu, perdeu o apoio da maioria da população? Quais são as chances disso acontecer quando aquelas vozes dissonantes da sociedade continuam apegadas a um projeto que rasteja na esfera pública, agonizando seus últimos atos? Deixo para outro post essas reflexões, mas o próprio “recebimento da herança” do petismo, entendido não nos moldes que Lula e José Dirceu consolidaram, como uma direção forte e vertical em busca do poder central, mas do petismo como um arranjo participativo e criativo que se construiu em algumas cidades ao longo da década de 90, de baixo para cima, não poderia ser reinventado sem precisar sustentar o entulho que se acumulou nos últimos anos, respirando fora da caixa petista? Entender isso me parece ser o primeiro passo de saída de um luto necessário, mas cuja duração já cai na melancolia que hoje é facilmente estraçalhada por redes de ódio que se disseminam por todos os lugares. A indignação não é injusta, ela é o fermento para uma nova invenção.

PS: São tantos os créditos deveriam ter sido dados nesse post vindos de trocas e conversas que acabei não linkando quase nada. Peço desculpas às amigas e amigos que me ajudaram a pensar isso.

Reorganizar as forças, contra-atacar o contra-ataque

2013 parecia apontar para a invenção de um novo Brasil. Depois de décadas de organização e um cruzamento intensivo das lutas com auxílio das redes virtuais, parecia que o Brasil finalmente poderia se reinventar em relação à sua imagem fraturada em duas partes, trocando a figura de país formado por uma desigualdade abissal por um composto de multiplicidades convivendo e confrontando o entulho da nossa história. Não se tratava de união, mas de composição. O lulismo havia tornado nossa sociedade um pouco menos injusta, movendo placas tectônicas e dinamizando setores que viviam estagnados na batalha cotidiana do dia-a-dia, lutando pela sobrevivência e sem possibilidade de olhar para um horizonte positivo. A nova geração, formada na crítica radical aos privilégios e às diversas formas de poder, confrontava as oligarquias corajosamente e enfrentava as polícias que tentavam contê-la.

Diversos obstáculos acabaram enfraquecendo essas lutas. O governismo, em vez de se propor escutar e tornar-se permeável aos movimentos sociais, preferiu encastelar-se nos projetos tecnoburocráticos da mandatária e sustentar-se na aliança com o baixo clero da política. A repressão política e policial foi brutal. As eleições de 2014 foram o ponto mais alto desse processo, quando as vozes dissonantes foram silenciadas pelas bandeiras do Vaticano Vermelho e a disputa que tornaria nosso país melhor acabou engolida pela velha polarização que comandara as eleições anteriores. A utilização de métodos virtuais sujos — como a boataria por meio de blogues alinhados e a proliferação de robôs operando como trolls – criou uma ferida que até hoje não cicatrizou. Os governistas vibraram ardentemente diante da vitória, mas logo perceberam que foi uma vitória de Pirro quando confrontados com um ministério ridículo e o chamado “ajuste fiscal”, desmentindo tudo que havia sido dito e afirmado como diferencial na campanha. A desmoralização total do PT provocou a reorganização da direita que, com a bagagem acumulada de 12 anos de desgaste, incluída a corrupção, e tendo aprendido estratégias com os movimentos de 2013, passou a ocupar as ruas, as redes sociais virtuais e a grande mídia.

Os movimentos, por outro lado, radicalizaram e desencadearam um processo de autofagia que envolvia uma luta contínua pela pureza e a expressão da “verdadeira militância”. O narcisismo das pequenas diferenças corroeu a composição, fechando em círculos cada vez mais restritos as redes longas que 2013, que eram culminância de um processo de longo fôlego forjado a partir da sinergia com movimentos internacionais e o fato de que a primeira batalha contra o conservadorismo das velhas elites havia sido vencida, passando-se a disputar qual seria a próxima fase. O projeto do Brasil Grande era recusado pelo Brasil menor, Brasil múltiplo, mas a hiperconectividade das redes sociais e o tipo de individuação sociotécnica que promovem acabou produzindo um desgaste em que a pessoalização gradualmente tomou o lugar da disputa política. As redes se esfacelaram e hoje briga-se por todos os lados. Cartas como essa – que recentemente circulou nas redes justamente em torno do MPL, principal articulador da primeira fase de 2013 – abundam pela Net, apontando divergências tratadas com agressividade, linchamentos, ironias, pesando o clima até o ponto em que o diálogo se torna impossível e os coletivos racham. A linguagem ácida, carrancuda e acusatória tomou conta do vocabulário e a alegria de estar junto perdeu espaço para a estrutura do “Tribunal do Facebook” que Tom Zé havia musicado alguns anos antes. O julgamento tomou o lugar da composição.

Diante de um governo fraco e envergonhado, as forças retrógradas avançaram. Sustentadas durante o lulismo pelo “pacto conservador” que excede o diagnóstico de André Singer, pois não se resume a uma estrutura econômica e nem mesmo “política” no sentido estrito, formas-de-vida fundamentalistas que se estendem do baixo clero parlamentar até setores desfavorecidos da sociedade identificados como propulsoras do próprio lulismo ganharam cada vez mais visibilidade. Ao que parece, o Brasil surfa com o resto do mundo não apenas nos enxames rebeldes, mas também na proliferação e capilarização do fundamentalismo religioso, nacionalista e contra a diferença em geral. Não se trata apenas do problema da falência da “inclusão pelo consumo”, mas da reversão de um pacto populista que foi engendrado e ruiu junto com a própria figura simbólica de Lula enquanto fiador de Dilma. Uma opção política que pede a conta dos efeitos colaterais. Os movimentos, que funcionavam no contrafluxo dessa tendência e envolviam um processo constituinte forjado nas universidades e nas ruas, enquanto isso devoravam-se em lutas vanguardistas, ignorando o foco de fascismo banal que crescia (e cresce) vertiginosamente a cada dia. Os nós mediadores das redes de longo alcance lutam entre si em torno de questões importantes, mas que poderiam ser tidas como um diferendo entre forças ocasionalmente aliadas diante de um adversário ultrapoderoso e com alta capacidade de disseminação.

Engendram-se tempos obscuros no futuro, com manobras parlamentares de um representante do pior da política nacional em torno de pautas polêmicas inicialmente seguradas pela Constituição em banho-maria e que por alguns instantes pareceram possíveis de caminhar numa direção transformadora, mas que hoje parecem em vias de ir na direção oposta, da demagogia, do cinismo, da violência. Redução da maioridade penal, estatuto da família, revogação do desarmamento, entre outras, são pautas que colidem com o “espírito” da Constituição, focado na dignidade humana e no respeito aos direitos, para polarizar a sociedade e torná-la ainda mais violenta. Enquanto isso, o “sistema-rede” ou “ecossistema” que gerou 2013 está cada vez mais fragmentado e despedaçado, corroído por lutas de vanguarda, quando o momento parece apontar para a necessidade de uma nova composição que mantenha o básico, apesar de novas alianças que vão se formando, como p.ex. no movimento promovido pelos garis do RJ ou pelos indígenas e ribeirinhos, entre outros. Infelizmente para todos, o momento político é de contra-ataque dos setores que foram atingidos pelas conquistas dos últimos anos, setores que não têm interesse em tornar a sociedade brasileira muito diferente do que ela é atualmente, pois lucram com isso, e não hesitarão em fazer as coisas ainda piores do que estão. O contra-ataque está aí, mas muitos ainda continuam pensando que os movimentos estão na ofensiva. Talvez seja o momento de reorganização para um contra-ataque ao contra-ataque, mas isso só ocorrerá se a retaguarda estiver forte. A construção dessa retaguarda não vai acontecer sem uma purgação do ressentimento e algum tempo para que cada um faço seu próprio luto. Por isso, quem quiser ajudar, na minha opinião, é bem vindo.

Fascismo à brasileira

O Brasil é aquele país que foi dividido na teoria e na prática em Casa Grande e Senzala. Independente do livro homônimo de Gilberto Freyre, que nos fornece uma popular representação de nós mesmos, a dualidade sobrevive sem se precisar corroborar o equilíbrio ou a dissolução dos antagonismos na mestiçagem postulados pelo antropólogo. E, a par do debate contemporâneo sobre o papel do Estado e dos conceitos de patrimonialismo, personalismo e da própria questão da corrupção, a sociedade fraturada em duas partes permanece como um dado reiterado na nossa autoimagem inclusive entre a maior parte dos liberais. A consciência de que existe uma parcela da população – a maioria -, tratada a partir da exceção e sem qualquer respeito aos seus direitos mínimos é contínua na nossa história e, por consequência, na reflexão sobre essa história. Pode ser na ideia de uma sociedade hierarquizada ou a partir da teoria do estado de exceção, pode ser na reflexão sobre a condição colonial e genocida da formação do Estado brasileiro ou por meio da desigualdade refletida em práticas culturais que geram “subcidadania”, essa divisão da sociedade brasileira aparece inequivocamente na maior parte das descrições do nosso país.

Sem precisar entrar no debate sobre a “força normativa” da Constituição, entendendo o jurídico como algo que inaugura enquanto poder constituinte uma nova configuração do político, podemos dizer, apenas com a observação mais ou menos crua dos fatos que a Constituição de 1988 representou um marco no sentido de garantir certos direitos – por aqui identificados geralmente como “direitos humanos” – capazes de provocar uma melhoria da condição cidadã da população marginalizada na nossa dualidade social, ou ao menos garantir que essas pessoas sejam colocadas no patamar da legalidade formal. Mais tarde, essa legislação passou a ser gradualmente amplificada para tornar mais efetivos – ou no mínimo regulamentados – certos direitos sociais e condições de proteção especial de minorias políticas ou indivíduos em condição de vulnerabilidade, tal como aconteceu com a efetivação dos direitos indígenas constitucionalmente assegurados e também com a promulgação do Estado da Criança e do Adolescente, que mais tarde viria a ter como companhia, por exemplo, o Estatuto do Idoso.

Um parênteses: a luta pelos direitos humanos não é um consenso na esquerda. E não digo isso apenas em relação à esquerda autoritária, cuja visão ainda próxima do estalinismo postula uma “ditadura do proletariado” em contraponto à “democracia burguesa”, mas em relação a visões mais contemporâneas de filósofos como Slavoj Zizek, Alain Badiou, Costa-Douzinas e Giorgio Agamben. Embora muito diferentes entre si, há um certo denominador comum que envolve a suspeição de ter a esquerda, ao aderir aos direitos humanos, subscrito o capitalismo liberal e sua estrutura jurídico-política, amesquinhando a luta política de uma dimensão revolucionária para a de ajustes ocasionais de uma totalidade que é enquanto tal injusta. Ao formular sua plataforma em termos de postulações jurídicas, a esquerda teria se colocado dentro de um modelo determinado que deveria ser revisado in totum, ainda abdicando da crítica à injustiça econômica e ao próprio Estado, ou simplesmente da política enquanto tal. Subscrevo em alguma medida essa crítica, mas a questão aqui envolvida tem pouca relação com isso, como procurarei mostrar. Fecha parênteses.

A partir dos anos 80 e sobretudo 90, com o aumento da violência devido à explosão populacional das grandes cidades, à desigualdade econômica cumulada com a ostentação do luxo e “camarotização” da sociedade, gerando fortes contrastes motivadores de pesado ressentimento entre classes, começa a emergir um discurso anticonstitucional por parte dos setores sociais atingidos pela violência urbana (isto é, a violência dos pobres) que depositam no reconhecimento de direitos para essas camadas mais vulneráveis o motivo para o crescimento da violência. Em outros termos, é como se a Casa Grande estivesse sentindo falta do chicote sobre a Senzala, como se a “suavização” gerada pelo reconhecimento de direitos provocasse a indisciplina dos setores que deveriam servir à Casa Grande e “desequilibrasse” a ordem social brasileira. A partir dessa ideia, começa-se a atacar os direitos humanos como responsáveis pelo violência e, mais tarde, o Estatuto da Criança e do Adolescente como parte do problema, ao garantir direitos e tratamento diferenciado (veja só, que heresia isso) para os adolescentes em situação de conflito com a lei. Assim, a Casa Grande, os donos do Brasil, podem ficar sossegados: o problema do Brasil não é ter uma sociedade totalmente desigual, violenta, fundada no genocídio e na escravidão, indiferente à miséria e à injustiça, mas sim o fato de que os sujeitos desta condição, os pobres e miseráveis, não são suficientemente domesticados para servir. O problema é o excesso de direitos. Por isso, não precisamos mudar nada na sociedade, apenas suprimir esses “erros” (os direitos) e “endurecer” o controle – fundamentalmente a partir do Estado policial – sobre a Senzala. Trata-se, por isso, de um conservadorismo antiliberal que, na falta de palavra melhor e considerado seu teor higienista, repressivo e policialesco, pode ser chamado de fascista.

Evidentemente tudo não passa de um punhado de sofismas, já que na prática os pobres, e dentre estes principalmente os negros, jamais deixaram de sentir a força bruta da exceção sem qualquer interrupção, sobretudo a partir da polícia. As prisões jamais passaram pelas reformas que supostamente as melhorariam e mais supostamente ainda gerariam “mordomias”. As garantias como a ampla defesa e o devido processo legal em geral são mera formalidade quando esses indivíduos são processados. O suposto sistema de proteção da criança e do adolescente na prática opera exatamente como um sistema punitivo. Em síntese, tudo aquilo que constituiria um benefício capaz de tornar as massas indisciplinadas e estaria fazendo a violência crescer na prática simplesmente não existe. O que opera na maioria dos casos é simplesmente aquilo que nosso personagem da Casa Grande, chamemo-lo de “cidadão de bem”, gostaria que fosse aplicado: cárceres como casas de torturas, assassinatos extrajudiciais, linchamentos e atuação seletiva do aparato repressivo do Estado.

Entender o “fascismo à brasileira”, por isso, deve passar pelo desejo fascista de massacrar o outro, de transformá-lo em um corpo sem direitos, exposto à violência estatal sem qualquer prerrogativa jurídica de enfrentá-lo. Não é apenas no Brasil que essa direita radical se articula (lembremos, por exemplo, dos casos francês e alemão, para citar dois polos “civilizados”), mas aqui a demanda tem a característica mais que conservadora, na realidade reacionária, de expressar o ressentimento da Casa Grande contra o reconhecimento de direitos para a Senzala. O que essa direita radical quer (não custa repetir que ela é antiliberal) é mais crueldade, é reagir contra o reconhecimento do outro como um sujeito de direitos, como um igual que precisa, em qualquer caso, ser tratado segundo certos parâmetros jurídicos pelo Estado. Por isso, ela investe contra todos os direitos e garantias conquistados desde a Constituição, ela precisa suprimi-los para reafirmar o fosso social que separa em duas metades a sociedade brasileira, ampliando a punição como forma de disciplinar os pobres e proteger a “sociedade” do seu perigo. Sua estratégia para não mover a ordem social injusta brasileira é reforçar as fronteiras, tornar os muros mais altos, encastelar-se em condomínios protegidos por capangas fortemente armados e, no limite, transformar o Estado nisso. Sua demanda por segurança é, na realidade, uma demanda por mais violência, mais crueldade no tratamento do outro que subverte a ordem, que reage violentamente à condição subalterna que foi inserido na sociedade. Por isso, não raro os aplausos à tortura, ao linchamento, ao assassinato e todo tipo de violência. Faixas brancas pedindo a paz são hipócritas porque essa elite sabe que a paz não virá jamais em um país com a configuração social desigual brasileira. O que ela pede, ao contrário, é mais violência, uma violência que dará um banho de sangue com as mãos do Estado sobre a sociedade brasileira, reafirmando as velhas posições sociais e intimidando aqueles que queiram transgredi-las. Não que isso vá funcionar (como vimos, já é o que é feito e não funciona), mas, hipnotizada pelo populismo punitivo e pelo “autoritarismo cool”, essa parece ser a única resposta histérica que a Casa Grande parece ser capaz de dar para a condição social do nosso país que, longe de ser o paternalismo benevolente que a direita radical descreve, é mundialmente reconhecida como uma das mais injustas da Terra.

A reorganização da direita e a nova política

As manifestações do 15M brasileiro têm dado o que pensar. Se a discussão é muito pouco profícua entre os adeptos dos dois polos em luta, que geralmente reproduzem os clichês mencionados já no post anterior, ela tem mostrado igualmente que a situação política está alcançando tal nível de insatisfação que até mesmo os governistas mais refratários à autocrítica parecem estar finalmente dando o braço a torcer daquilo que negaram, sem interrupções, desde 2013: o Brasil mudou. O massivo compartilhamento do excelente texto de Eliane Brum sobre a situação geral é um exemplo disso. Eliane é muito compartilhada nas redes, mas esse último texto parece ter estourado o teto ontem. E perceba-se que, sem desmerecer em nenhum momento qualquer ponto da brilhante análise da jornalista, absolutamente nada ali é inédito: trata-se de uma síntese muito bem ponderada de tudo que uma larga rede de pessoas vem sustentando há muitos anos, bem antes de 2013 inclusive, no ativismo digital e nas ruas. O que parece ter mudado é que alguns dos últimos muros de resistência parecem estar caindo e a situação vai ficando cada vez mais escancarada.

Muitos intérpretes do momento têm sustentado uma tese semelhante à que defendi (como parte que sou da mesma rede) no post anterior: o afunilamento e a insistência de polarização agressiva por parte do PT e seus apoiadores, com a negativa de reconhecimento de outros campos viáveis de alternativas transformadoras (dos movimentos mais subversivos de Junho até uma saída institucional com Marina Silva), provocou o efeito de “profecia que cumpre a si mesma”, tornando o polo conservador dominante nas ruas diante da fragilização do Governo. Se era com a direita que o petismo queria brigar, ei-la nas ruas, exatamente como os blogueiros progressistas descreviam os mais diversos eventos que se acumularam desde 2013, incluídos aí os protestos contra a Copa, a greve dos garis e professores no Rio de Janeiro, entre muitos outros. A vertigem que provocavam tais “análises”, sempre concentradas em mostrar que os envolvidos seriam fantoches manipulados pela direita e com isso reforçando um sistema de consensos que se reforçava em escala cada vez maior e refletia em ações institucionais do poder público (como a perseguição policial e judicial até hoje em curso), hoje já pode ser considerada superada. Com a extenuação da capacidade de mobilização crescente dos novos movimentos sociais pela forte repressão, quem sai às ruas é a própria direita, agora sem ambiguidades e com o claro objetivo de derrubar o PT.

Que fique claro que, como sugeriu Eduardo Sterzi em um dos comentários recentes nas redes, se trata de uma luta entre fantasmas ou em torno de um “significante vazio”, já que o PT hoje em dia concretamente não representa mais aquilo que a direita afirma. Nesse sentido, se simbolicamente os protestos nos lembram o pior do pior (manifestações classistas, pedido de volta do regime autoritário, incapacidade de perceber a corrupção na modalidade sistêmica que excede o caráter dos indivíduos e de não fazer uma censura seletiva que atinja apenas inimigos políticos), é possível ler as manifestações materialmente como uma reorganização natural da direita diante da incompetência gerencial do governo e da perspectiva de retração econômica. O medo da classe média que atinge por tabela, e isso se faz ver nas ruas, as classes mais baixas é da falta de horizontes. O que na Europa se canalizou contra as políticas de austeridade aqui, devido à conjuntura diferente e ao fato de um partido de esquerda estar no governo, se apresentou como uma demanda do “cidadão comum” contra a corrupção – causa tida como explicativa do cenário econômico desfavorável vivido. Assim como o PT foi capaz de trazer a simpatia de uma grande parte da população refratária a pautas de esquerda devido ao sucesso econômico do lulismo, a mesma população “não-ideológica” agora pede a conta do insucesso atual. O salto alto dos petistas até o baque da eleição de 2014 se baseava nessa confiança subterrânea de que, acontecesse o que acontecesse, a economia seguraria o rojão da política e manteria a base fiel ao lulismo. Ao minar a credibilidade do pacto conservador com a maquiagem da situação econômica, Dilma perdeu a confiança e com isso rompeu a aliança silenciosa.

Do ponto de vista das pautas, muito pouco se pode esperar da organização do 15M. A pauta reflete as abordagens mais simplistas da política brasileira, o conservadorismo enraizado, as visões mais tacanhas dos problemas do Brasil que nunca responsabilizam a gigantesca injustiça histórica na nossa formação nacional pelos problemas atuais, mas apenas a falta de iniciativa individual dos mais pobres e a incompetência dos governantes, com destaque para os petistas. Curiosamente, os mesmos integrantes da elite e classe média que acusam de preguiçosos os pobres são os que se mostram refratários à leitura, à reflexão e ao estudo em geral, formando num específico habitus de classe que valoriza a ostentação do luxo consumista sobre a formação intelectual (ou em muitos casos até mesmo moral) sólida (salvo poucas exceções). Os grupos organizadores dos eventos, apesar de reivindicarem-se liberais, não apresentam a menor clareza do que isso significa, mostrando-se refratários a enfrentar temas que exigiriam compromisso com a liberdade individual (p.ex., política de drogas, aborto, respeito aos direitos humanos em geral) com coerência e sendo mais parecidos com o que Luiz Eduardo Soares chamou em um texto antigo de “liberal de costeleta”. Mas o recorte de classe, apesar de verdadeiro, não dá conta de todos os aspectos do fenômeno, pois, como Rodrigo Nunes escreveu depois dos eventos, a sombra afetiva de Junho está presente ali. A sensação de “empoderamento” e participação política está presente e tende a se repetir. O Junho que o Governo negou até onde pode, fazendo engolir as manifestações na repressão, voltou a aparecer.

Quando se falava de “nova política”, muitos deram gargalhadas e reafirmaram (de modo bastante cínico e bem pouco cético, diga-se) que a única política possível era a que está aí. Recolheram a fala de Beto Albuquerque para dizer que era impossível governar sem o PMDB. Mas o que se afirmava – independentemente da figura de Marina Silva – é que existe uma nova forma de fazer política e esse processo não só é inevitável, cruzando os dois hemisférios e se manifestando nos mais diversos países, como já começou. Esse processo envolve uma nova constituição da relação entre o presencial e o virtual, uma ampla integração entre as redes digitais e a política de rua, o surgimento de novos mediadores e a participação ativa dos agentes na construção do imaginário coletivo. Junho mostrou e o 15M confirmou que a organização não depende mais das instituições do século XX, mas atua com flashmobs, usando a lógica da ocupação como mecanismo de pressão sobre o sistema político institucionalizado. O Estado é visto como uma burocracia distanciada da realidade social pulsante que tenta incessantemente a capturar, mas cada vez mais se aprofunda o abismo entre ambos. O 15M mobilizou essas redes à direita, canalizando os afetos na direção moralista, integrando parcelas descontentes do eleitorado que perdeu a eleição. Independente disso, do ponto de vista formal essa mobilização marca a entrada definitiva da nova política no sistema fechado dos partidos políticos.

Muitos governistas reagiram contra as manifestações acusando-as de ingenuidade e cobrando propostas de reforma política. O casuísmo, no entanto, não é privilégio da direita: todos lembramos do “Fora FHC” e que o PT na oposição aproveitava politicamente os escândalos de corrupção para se cacifar politicamente. Por isso, a censura é tão casuísta como a crítica. A linguagem da direita é legítima do ponto de vista democrático, mesmo que saibamos os desequilíbrios na cobertura da grande mídia e que a própria direita vive envolvida em escândalos onde está no poder hoje mesmo. A corrupção também é uma pauta legítima e um mal epidêmico no Brasil. Ela perpetua velhas oligarquias, drena recursos que deveriam retornar para toda população e vitimiza justamente os mais pobres de forma mais intensa.

O que surpreende, no entanto, é a falta de imaginação da própria esquerda governista quanto à reforma política. A resposta unânime para todos os problemas do Brasil, quando esmiuçada, reafirma os partidos e reforça a estrutura atual, representando muito menos do que efetivamente já acontece em termos políticos no século XXI. Nada se comenta sobre o uso nas novas tecnologias, sobre novos arranjos coletivos, a possibilidade de organizações mais horizontais e descentralizadas, uma participação maior na construção cidadã, sem falar da resposta imediata à possibilidade real de catástrofe ecológica. O financiamento público de campanha aparece como grande panaceia que iria dar conta de uma quantidade de problemas que transborda a questão, envolvendo o problema da representação como um todo. Não seria a crise política também um resultado da timidez das propostas que são apresentadas como a linha de fuga da situação atual? Em vez de falar em reforma política e continuar a idolatria da burocracia estatal, por que não pensarmos com mais arrojo, em um pensamento político revolucionário? Deixar aflorar essa nova política pode ser dar a chance de reorganização do velho aparato mundialmente desgastado, em plena crise. E se o grande pacto de 1988, com seu fiador PMDB (quem foi mesmo o principal articulador da Constituinte?), não estivesse dando conta do surgimento dessas novas redes de articulação política que por ora, na falta de oxigenação das instituições, se expressa como destituinte de tudo e todos? Mesmo os setores mais radicais da esquerda só conseguem pensar em termos de poder constituinte – conceito que ainda está preso dentro da armadura jurídica -, em vez de falar de revolução. Se a palavra está marcada por grandes eventos sangrentos que procuram fundar uma comunidade política ex nihilo, não é possível dar um novo sentido para ela, mais gradual e menos teológico-salvacionista, mas forte o suficiente para penetrar nas mais íntimas nervuras do poder e liberar o potencial criativo que está reprimido nesse imaginário político neurótico que vivemos? Essa parece ser a única resposta à altura da gigantesca rearticulação da direita que vivenciaremos nos próximos meses.

Sinuca de bico

É difícil analisar o Brasil atual, entre outras razões, pelo efeito performativo. Como as peças estão muito soltas, tudo que é dito de certa forma ocupa espaço na bagunça e isso tem feito alguns intelectuais jogar fora os últimos pingos de credibilidade que ainda restam, considerando que credibilidade se conquista com independência, não adesismo, e que se espera de um intelectual algo diferente da manipulação. Infelizmente, no entanto, as regras de compartilhamento são outras: o que está a favor do meu lado é bom, e vice-versa. É interessante o paradoxo de que todo mundo critica (com razão) a má qualidade do trabalho da mídia no Brasil (até a direita não raro faz isso), mas as mesmas pessoas compartilham qualquer porcaria que leem, mesmo que visivelmente inconsistente. Este post é uma pequena tentativa errática de esboçar a situação atual.

Primeiro, a polarização básica. Governistas chamam manifestantes de burgueses, coxinhas e elite branca e manifestantes chamam governistas de petralhas, corruptos e comunistas. Até aí nada de novo. E são centenas de artigos por aí para mostrar que ambos estão no mínimo parcialmente errados. De um lado, os governistas erram no diagnóstico ao associar os manifestantes apenas à “Casa Grande” e explicar a motivação pelos programas sociais. O primeiro erro desse raciocínio é que não é apenas a alta burguesia a protestar, mas também os pequenos comerciantes e algumas categorias que estão na “classe trabalhadora”, os “batalhadores” ou, em marxistês, a pequena burguesia. Situação que aos olhos petistas deve ser insuportável, já que, fora talvez a extrema miséria, nenhum outro setor da sociedade brasileira foi tão contemplado pelas políticas do PT quanto esse, especialmente com créditos e aumento do salário mínimo. Embora dividida, a classe dos “batalhadores” é muito suscetível ao discurso moral e politicamente conservadora, tendo se tornado lulista por conversão. Isso leva ao segundo erro: o de diagnosticar que os programas sociais são a motivação. Sim, é verdade que a elite e a classe média detestam os programas sociais e têm alergia ao PT na maioria dos casos por preconceito de classe. Que o discurso desse setor “Miami” é horroroso e simplório. Mas não pode ser por isso que estão ocorrendo protestos, simplesmente porque o PT executou vários desses projetos nos últimos dez anos sem que tenha havido qualquer tipo de revolta mais forte contra. O que motiva os protestos é o autointeresse dos indivíduos dessas classes que sentem no bolso a recessão econômica, e já faz algum tempo. Bolsa-família deixa muita gente brava, mas ninguém sai pra rua para protestar por isso. O que motiva é o bolso. A votação significativa de Aécio mostra que as mentiras de Dilma não penetraram com a mesma força nesse público mais calculador e utilitarista, já tendo a irresignação se expressado durante o pleito. A adoção das medidas de corte de gastos, curiosamente o mesmo que Aécio faria, apenas escancarou a situação, fazendo com que o governo perdesse ainda mais credibilidade (já que denegava a existência de crise durante as eleições). Assim, a explicação que coloca na conta dos programas sociais a revolta da elite e classe média é parcialmente verdadeira; o verdadeiro catalisador é a defesa dos seus próprios interesses (econômicos). A elite, em especial e contrariando a tese de aversão à mobilidade social, estava já mexendo muitos pauzinhos para lucrar com a ascensão dos batalhadores. Por mais que no cochicho vigorasse o preconceito, no geral o processo era visto como oportunidade para negócios. A crise econômica estancou todo esse processo, a elite voltou à oposição veemente e a classe dos batalhadores, ainda que dividida, em boa parte voltou para o seu lugar natural mais conservador.

O que está em jogo, portanto, em boa parte é a capacidade de o PT gerir eficientemente o status quo no seu pacto de conciliação entre classes. Muitos intelectuais – cito Vladimir Safatle como exemplo – anunciavam há muito tempo que o pacto lulista estava esgotado nas suas possibilidades em relação à esquerda. A questão agora é simplesmente o quanto ele consegue segurar o PT no governo (o que hoje raramente coincide com possibilidades da esquerda). Quando caíram as bases do pacto conservador (o enriquecimento de todos), o PT perdeu parte dos 80% de aprovação que tinha no fim da gestão Lula. No entanto, o problema aqui não é o potencial transformador ou revolucionário do PT, apenas a incompetência na gestão técnica do pacto. É contra isso que a elite branca protesta, ainda que ela não possa deixar de expressar ódio e  ressentimento de classe. Se o PT, diante do esgotamento do lulismo, tivesse adotado medidas como as “reformas de base” de Jango, a conjuntura seria totalmente outra e aí sim seria possível comparar a situação atual com as vésperas de 1964, com um governo emparedado por uma elite que quer bloquear avanços sociais. E o PT teve essa chance no mínimo duas vezes, talvez três (no início do mandato de Dilma, com a aprovação recorde; nas Jornadas de Junho e talvez depois dessas eleições, quando foi eleito pela esquerda do “voto crítico”). Mas para isso seria necessário ao PT fazer algo que ele não está disposto: arriscar perder. Como a principal preocupação é se manter no poder (sob motivações diversas, de boa e má fé), propor reformas radicais nas estruturas brasileiras está fora de questão. Se Dilma cochichasse para Mercadante ou Rosseto: “se a elite está contra mim, vou radicalizar e propor as reformas. Se me derrubarem, caio de pé”, o cenário seria totalmente outro. Mas esperar isso, sinceramente, é muita ingenuidade depois de 4 anos de governo desastroso na área política. A tendência que estamos testemunhando é exatamente a inversa: continuar cuspindo nos aliados de esquerda e tentar reconstruir o pacto conservador com medidas de direita que apaziguariam o cenário.

De outro lado, por óbvio que a oposição é casuísta e nem preciso comentar a mentalidade antipetista, tal é o nível de estultice. A acusação de corrupção contra Dilma e o PT elege-o como bode expiatório, já que sabemos que o PMDB, por exemplo, está ainda muito mais afundado que o seu recente novo sócio. Sem falar do papelão da Arena (PP), recentemente mostrando que a corrupção não tem nada de fato novo no Brasil e que a Ditadura não era um oásis de homens honestos. A eleição do PT como emblema da corrupção é seletiva e carrega consigo uma má explicação para o cenário econômico, a de que o país está em crise devido ao aumento da corrupção. Isto simplesmente não é verdade, o que não torna o PT menos culpado por conduzir um governo corrupto e não permite desresponsabilizar os que estão aí jogando a culpa para trás. Além disso, os protestos “paneleiros” não conseguem deixar de mostrar ódio de classe, preconceitos diversos e pautas confusas que estão longe de significar algum tipo de fato positivo para a política brasileira. A mobilização reacionária é um sinal de pessimismo desorganizado, tal como acontece em grandes grupos do Facebook de “revoltados” que na realidade são os mais conformados com a situação atual, postulando apenas meia dúzia de gambiarras para adequar as políticas públicas aos seus interesses. Essas mobilizações também devem sofrer o efeito da desorganização, combinando tendências diferentes que já estão em disputa por espaço, e pelo fato de o rótulo “golpista”, “coxinha” ou “elite branca”, apesar dos pesares, ter tido sim um efeito de problematização que perturbou a unidade desses movimentos. A própria associação entre impeachment e golpe produz um efeito desmobilizador ou no mínimo uma cautela entre diversos setores que integram esse campo. Juridicamente, aliás, o impeachment pressupõe crime doloso, figura complicada de se provar em caso de suposta omissão. Em todo caso, o próximo domingo deve ser de grandes aglomerações; vamos ver qual é o potencial dessas massas que sairão às ruas com certeza.

A aposta de Dilma, bastante arriscada, é na renormalização do sistema político depois de um certo abalo. Com o enfraquecimento do Congresso pelas investigações da Lava-Jato, os parlamentares não terão moral para enfrentar com os dentes para fora o Governo. Essa tendência já se refletia no fim-de-semana, não fosse o pronunciamento totalmente desastrado e inoportuno da própria Dilma, que trouxe de volta os holofotes para si. O PSDB, a partir de Fernando Henrique Cardoso, já mostrou que não quer o impeachment, em especial porque não deseja ser investigado. Há sinais por aí indicando que, se as manifestações forem excessivamente confusas e tumultuadas, a panela pode esfriar e se instituir um novo equilíbrio peemedebista, ainda que com a oposição do PSDB mais forte. Marina Silva, outra força política de peso (teve 1/4 dos votos nas últimas duas eleições), continua calada, sem se posicionar em um cenário que exigiria sua apresentação [hoje, 14/3, Marina se posicionou].

O governo (não o governismo) aposta também que movimentos de esquerda que poderiam enfraquecer ainda mais seu mandato irão arrefecer para evitar o risco do impeachment, tirando o pé do acelerador. Resta a sinuca de bico para a esquerda. Ver a ascensão conservadora, que provavelmente será forte no próximo dia 15, sem poder aderir a um governo que nada tem para oferecer e correndo o risco de aumentar os números dos reacionários torna a decisão difícil. Mobilizar suas forças reconhecendo que o PT não é mais um aglutinador parece mais que necessário, “organizando o pessimismo”, como disse Benjamin certa vez. No entanto, considerando as prisões políticas e perseguições policiais promovidas contra manifestantes no ano passado, os movimentos ainda não conseguiram retomar a força de 2013. O cenário é mais fértil para pensamentos menos complexos que aquele que pretende superar a falsa polaridade, ainda que o PSOL já comece, por exemplo, a dar sinais que a reconhece. Junho pode se repetir, mas dessa vez com a direita preponderando na relação figura/fundo, ao contrário do que ocorreu originalmente. Permanece a sinuca de bico: a esquerda não quer, de forma alguma, apoiar os reacionários que são seus principais inimigos, mas ao mesmo tempo tem o dever político de protestar com um governo desastroso em andamento que não dá qualquer sinal de virada à esquerda e por isso não tem a força de mobilizar mais que os alinhados automáticos. Será que Dilma oferecerá alguma migalha para movimentos mais simpáticos ao seu governo, como o MTST, ou continuará esperando que o momento passe, fazendo a aposta arriscada do abafamento e renormalização? É a pergunta que se apresenta para os próximos dias. O fato é que a direita virá forte no próximo domingo e ainda não sabemos as consequências que isso irá gerar.

Pausa para os comerciais

Esse semestre estou voltando à ativa nos cursos livres que costumava oferecer antes da sobrecarga do último ano. Na Ulbra (campus Canoas), onde leciono, vou oferecer dois cursos de extensão sobre temas que já abordei outras vezes para quem nunca frequentou: o primeiro é “Tecnologia e Cultura: da pedra lascada às redes sociais”, onde faço uma abordagem interdisciplinar sobre a técnica no pensamento contemporâneo, e “Subpop: o rock na formação da cultura jovem”, sobre as relações entre rock e juventude desde os anos 60 (focaremos, entre outros, Beatles, Stones, Floyd, Doors, Hendrix, Velvet, Janis, Ramones, Patti Smith, Stooges, Joy Division, Nirvana, Radiohead, Strokes, entre outros). Esses cursos serão de 20h nos fins de semana. Mais informações no link: http://www.ulbra.br/extensao/cursos-e-eventos/ (clicar no item de cada curso).

Além deles, promovo com meu amigo Alexandre Pandolfo, atualmente doutorando em Letras, encontros que nomeamos “Conversas sobre literatura e filosofia”, toda última terça-feira do mês no Clube de Cultura, em Porto Alegre, às 19h (informações abaixo, por inbox no Facebook ou email: moysespintoneto@gmail.com / alexandrecostipandolfo@gmail.com). Nosso primeiro encontro, 31/3, tratará da atualidade da crítica à ditadura.

Conversas sobre Literatura e Filosofia

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A política pediu a conta

Quando escrevi o texto “O pior pode estar por vir“, em plena campanha eleitoral, alguns amigos me acusaram de estar naufragando nos mais tacanhos argumentos da direita e de não ter entendido nada da disputa política no Brasil. Rechacei fortemente essa interpretação, já que o que o post afirmava é que, ao aniquilar todas as alternativas de esquerda com sua retórica “PT ou direita”, o PT estava propiciando condições para a aglutinação da oposição justamente em torno da direita, como espécie de “profecia-que-cumpre-a-si-mesma”. A crença na figura salvadora de Lula, que supostamente sobrepujaria os dissensos e seria capaz de apaziguar a cena, não apenas mostrava como o PT vinha se tornando – contra suas ideias fundantes – um partido baseado numa figura populista, como também que a tensão entre os dois polos só se agravaria, já que Lula é exatamente o emblema mais detestado pela direita na associação com o petismo. Hoje é tempo de voltar ao tema e ver que o post não estava tão errado assim.

Já se sabia, mas não com a intensidade atual, que o escândalo da Petrobrás seria devastador para a popularidade do Governo. A relativização que remete a FHC não é mais convincente simplesmente porque são 12 anos de poder. Como sempre, Dilma mais uma vez subestimou a política e fez uma campanha dizendo que faria o oposto que está fazendo. O resultado é que sua base de apoio eleitoral está perdida, porque a vê executando as medidas do seu opositor, e o outro campo está mais forte, já que se abastece do desgaste que 12 anos governando significam. No fundo, a campanha foi a mesma eterna subestimação da inteligência alheia que caracteriza o governismo, recorrendo à ideia de que existe uma alma profunda indene no PT sempre passível de ser ressuscitada e todos que se opõem ao governo como ele é de fato estão “fazendo o jogo da direita”. O que ocorreu em 2013 já devia ter acordado os incautos do ridículo dessa argumentação, mas parece ainda ter sido pouco.

Marcos Nobre recentemente declarou que o peemedebismo partiu para o ofensiva, o PT perdeu o leme que acreditava deter. Bruno Cava o corrigiu, com toda razão, afirmando a íntima solidariedade do modus operandi lulo-dilmista de fazer política com o peemedebismo, considerando que as relações são mais intrincadas que parecem. Eu diria que é necessário assumir que finalmente a política pediu a conta. Depois de 4 anos de gestão tecnocrática de Dilma, na qual a política era ignorada em nome de resultados econômicos (que não vieram), o cenário brasileiro está devastado: fundamentalistas religiosos e fascistas nunca foram tão fortes, a fisiologia nunca esteve tão poderosa e a oposição de direita se apresenta como eleitoralmente viável. O silêncio de Aécio em relação ao impeachment é compreensível pelas mesmas razões que o PT teria ficado se tivesse havido um grande movimento de massa contra FHC após a reeleição. Condená-lo nesse caso significaria que teríamos que, por exemplo, censurar as ruas por estar colocando em crise o Governo Beto Richa no Paraná. O que está em jogo nesse tipo de argumentação é uma embalagem institucionalista, mas no fundo um tipo de crença de que o PT deveria estar imune a críticas e à pressão popular em um pacto secreto do tipo “sabemos que está tudo errado, mas não podemos falar mal do nosso projeto”. Coisas que 12 anos de governo deveriam ter sido suficientes para desfazer. Governar tem seu preço.

A política pediu a conta. Nos últimos 4 anos, não apenas Dilma consolidou o peemedebismo (i.e., a fisiologia parlamentar), como buscou fomentar a mentalidade do “não há alternativa” a isso. O pragmatismo rasteiro fortaleceu o PMDB e depois, achando que podia picar o próprio escorpião, fomentou o surgimento de outros partidos fisiológicos para enfraquecê-lo e governar desimpedido. Ao mesmo tempo, afastou-se das pautas da esquerda e perdeu sua base natural. Não conheço estratégia mais burra: perdeu-se os aliados naturais e o escorpião ficou ainda mais venenoso, porque conta como aliados com os próprios fisiológicos que supostamente iriam o enfrentar. A arrogância, mais uma vez e como sempre, deixa o Governo engasgado. Sempre ela.

Mais ainda: o PT fechou a torneira de todas as alternativas de esquerda. A desmobilização dos movimentos sociais não foi apenas obra do acaso ou do adesismo. Eles foram e estão sendo brutalmente reprimidos por meio de perseguição policial, indiciamento, julgamento e prisões. O Brasil vive um estado de exceção com prisões políticas continuamente acontecendo, mesmo que isso não signifique um tipo de conspiração de todos os poderes, mas apenas o funcionamento mais ou menos natural de uma máquina arbitrária que, formada na Ditadura Militar, acostumou-se a considerar a subversão ou a dissidência como assunto de polícia. Ao manter José Eduardo Cardozo na pasta da Justiça, Dilma sinaliza que não tem qualquer interesse de mudar essa política, consentindo inclusive com o aspecto genocida que caracteriza as operações militares (ela própria afirmou-as como modelo) que acontecem na Favela da Maré. Não há nenhum sinal de mudança a respeito.

Fora isso, o governismo enfraqueceu e quase destruiu a figura política de Marina Silva, única alternativa eleitoralmente viável que aparecera ao lulismo e ao neodesenvolvimentismo sem significar o retorno puro e simples da direita. Marina também teve seus erros, por óbvio, mas a operação deflagrada contra ela foi a maior estratégia de destruição política que testemunhei. Ao fazer isso, o PT desqualificou o debate e impediu que a disputa por hegemonia se desse entre dois projetos transformadores. Hoje, está claro (e já está na hora de os intelectuais que se posicionaram nas eleições assumirem sua responsabilidade por isso) que o Governo Dilma II é a seguinte fórmula: tudo de negativo que Marina faria (ajuste fiscal) e nada da parte positiva (meio ambiente, educação etc.). A incrível arrogância (mais uma vez ela) do PT acreditou que o PSDB era um partido quase morto que valia a pena ressuscitar para enfrentar um rival conhecido no segundo turno. O resultado é que, com a derrota política no parlamento resultado de quatro anos em que a política foi solenemente ignorada como assunto irrelevante (lembremos dos “projetos ideológicos irreais”), a direita voltou a ser competitiva.

O cenário é muito pior que parecia. Dilma conseguiu a proeza de nomear o pior Ministério dos últimos 20 anos, loteando cargos fundamentais como Educação e Cidades, entregou a Fazenda para um chicagoboy que faz exatamente o que seus adeptos mais detestam e estrangulou todas as alternativas de esquerda ao longo dos últimos quatro anos, fortalecendo a direita como oposição. Aniquilou as últimas esperanças das polianas das eleições passadas. Os próximos dias serão tensos e há forte chance de que Junho/13 se repita mais ou menos com as mesmas contradições, mas com uma direita mais organizada e forte. O que o Governo oferece para ser defendido? Uma bandeira? Um cargo? Está tudo muito pior. O que podemos fazer nesse instante não é aderir ao governismo no momento em que não resta quase nada a defender, mas buscar construir e apoiar mobilizações à esquerda que dividam o palco com a natural reorganização, depois de 12 anos, da direita. Assumir que esse governo é um fracasso retumbante e que os governistas – em especial os mais próximos a Dilma – não fazem ideia do gigantesco equívoco que vêm praticando (pela sua arrogância incrível) parece ser o primeiro passo para construir o que o Brasil precisa: uma oposição que vá contra os reacionários e entenda o PT como parte da mesma casta política que nos governa. A posição ambígua do PSOL e do MTST a respeito mostram que o impasse está colocado. O petismo, a crença residual numa imagem simbólica que já se esfacelou com o tempo e precisa ser no mínimo reinventada, é o principal obstáculo para que surja uma nova zona política capaz de servir como alternativa à ascensão reacionária.

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O debate Arantes/Fausto sobre estado de exceção

Recentemente, Ruy Fausto publicou uma longa resenha acerca do novo trabalho de Paulo Arantes, O Novo Tempo do Mundo. Como já tinha lido o livro de Arantes com interesse, o texto me chamou atenção. Não tenho como resumir tudo por aqui, mas a meu ver, depois de alguns elogios (sobretudo ao estilo de Arantes que, confesso, é o que menos aprecio no livro), os argumentos de Ruy Fausto poderiam ser resumidos em dois pontos: primeiro, falta a Arantes, em pleno século XXI, uma autocrítica do projeto da esquerda radical, em especial a experiência do “socialismo real”. As menções ao totalitarismo soviético seriam, para Fausto, apenas ocasionais no texto de Arantes, sem integrar o núcleo examinado do porquê houve o “encurtamento do horizonte” descrito no livro como o processo que leva a uma juventude “com expectativas decrescentes”. Por outro lado, Arantes teria subestimado a importância da democracia na contemporaneidade, resumindo todos os seus pontos a uma crítica do capitalismo que teria sido atualizada, a fim de transbordar para o pensamento da política, com as teses de Giorgio Agamben acerca do estado de exceção.

Não tenho interesse em defender o trabalho de Arantes, a quem contudo li ocasionalmente e gosto de alguns textos (em especial o que trata da “fratura brasileira do mundo”). Penso que a crítica de Fausto em relação à ausência de luto e de conclusões mais significativas em torno do fracasso do projeto socialista, em especial na sua variante estalinista, merece mesmo uma reflexão mais demorada por parte da esquerda acadêmica que recusa o liberalismo político. Escrevi o texto “Para dar fim ao Vaticano Vermelho” nesse sentido. A crítica ao capitalismo não é suficiente para unificar o campo e as práticas políticas (tanto da academia quanto nas esferas institucionais) indicam que a crença na infalibilidade do Partido continua mais ou menos de pé. Ademais, o apego à tradição marxista me parece que faz Paulo Arantes cego à radicalidade material da questão ecológica na atualidade, impedindo-o de tirar conclusões mais potentes dos próprios termos que usa. A falta de horizonte remoto e expectativas decrescentes não poderiam, por exemplo, ser uma resposta decrescimentista da juventude em relação ao aceleracionismo que povoa os imaginários da esquerda e da direita nos seus projetos de crescimento infinito e construção do paraíso na Terra? Para Arantes, provavelmente a questão ecológica é apenas o novo “ópio do povo”, como é para outros como Zizek e Badiou. Nesse ponto, o recente livro de Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, Há mundo por vir?, é muito superior na sua radicalidade em relação ao nosso tempo.

Mas o que me interessa no debate Arantes/Fausto é propriamente a questão do estado de exceção. A questão povoa os debates políticos contemporâneos, inclusive na prática dos movimentos sociais, e temos visto um séquito de defensores do “Estado democrático de direito” reagirem com virulência às teses de Agamben. Os campos do direito, em especial, e também da parte da filosofia e sociologia hegemônica recusam terminantemente as teses de Homo sacer, não raro usando frases como o próprio Fausto faz: “teoria que é pobre na forma e errada no conteúdo” e até [teoria] “muito miserável sobre a história contemporânea”, como se fosse possível descartar os trabalhos de Agamben como algo sem consistência. Por mais o método genealógico e a tese central de Agamben possa ser discutíveis (e são), a teoria não é nem pobre na forma (na verdade, toda primeira parte de Homo sacer: o poder soberano e a vida nua é dedicada a pensar a topologia do estado de exceção e da vida nua) e muito menos simplesmente errada no conteúdo. O argumento de Fausto, em particular, é de que ela não reconheceria o que há de “radicalmente novo” no nazismo. Na realidade, é exatamente o contrário: o nazismo é a consumação final do impulso estatal de separação entre forma-de-vida e vida nua, reduzindo o humano no limite à condição de “Muselmann” no campos de concentração. Assim, a soberania é reduzida ao seu núcleo essencial, o poder de matar sem praticar homicídio nem sacrifício, produzindo vida matável. Ao eleger o nazismo como “paradigma”, Agamben não está nivelando todos os regimes, mas apenas explicitando o nó fundamental que sustenta um poder estatal que nenhuma democracia com Estado consegue desfazer. As práticas dos Estados (todos, todos, todos, sem exceção) não cansam de o comprovar.

Assim, pode até ser que dizer que vivemos em “estado de exceção permanente” pode ser uma hipérbole, mas nesse caso temos que optar: hipérbole ou eufemismo. Ao criticar a abordagem de Arantes em torno das UPPs que as qualifica como “trabalho social armado”, por exemplo, Fausto diz: “Ora, se é verdade que ações brutais de uma polícia arquicorrupta tendem a fazer do Estado algo como um poder de gangue entre outros poderes, nem de direito nem mesmo de fato o Estado, e mesmo o Estado brasileiro, representa hoje rigorosamente tal coisa”. Não representará? Dizer que “tendem a fazer do Estado algo como um poder de gangue” não é exatamente admitir as teses de Agamben e Arantes de que o Estado opera na exceção, e não segundo a lei? Mas temos leis! Temos uma Constituição! – gritam os juristas. Certamente. No entanto, a pergunta é se realmente a diferença entre uma polícia que atua conforme parâmetros de exceção (praticando homicídio, sequestro, tortura, desaparecimento, extorsão etc.) na presença de uma legislação “humanista” e sem essa mesma legislação é relevante a ponto de descaracterizar a exceção? Lembremos, pois, que no Brasil nenhum regime de exceção viveu sem uma legislação correspondente.

Supostamente, isso nos impediria de diferenciar o momento atual das ditaduras. Mas não é o caso. Agamben, aliás, diz isso na introdução a Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. A questão é que, com a presença do Estado e com ele da soberania, nenhum regime democrático consegue eliminar a exceção na qual está fundado. E gradualmente as democracias parlamentares, por meio de medidas de vigilância e controle, estariam se tornando visível esse fundamento. Para não usar essa imagem do fundamento, poderíamos pensar na relação de figura/fundo. Estado de direito e estado de exceção estão em uma relação de figura/fundo que se alterna constantemente. E isso é particularmente verdadeiro justamente para o caso brasileiro, Estado especializado na configuração dual da estrutura jurídico-política desde o genocídio contra os índios e a escravidão negra. A sociedade brasileira formou-se nessa dualidade. Walter Benjamin, inspirador da tese de Agamben, disse que o estado de exceção é a regra para os oprimidos. Ora, e é justamente nesse caso que fica patente a existência da exceção no Brasil. Para nós, o estado de exceção é ainda muito mais visível.

Em resposta a isso, os legitimadores da ordem jogam a última carta: com isso, estar-se-ia desacreditando o Estado de direito, a Constituição, os direitos humanos e a própria luta contra a Ditadura. No entanto, esse argumento facilmente ricocheteia: não seriam os próprios legitimadores que estariam desmerecendo tudo isso ao legitimar uma situação  material em que eles não estão presentes? Não teriam os “subversivos” que lutaram contra a Ditadura desejado uma democracia em que a polícia militar não pode provocar “desaparecimentos” ou executar pessoas sem responder por isso? Não desejariam eles que a tortura fosse erradicada de vez? Não seriam os legitimadores os mais infiéis ao darem por encerrada uma luta contra fenômenos que ainda existem? Se a Ditadura persiste com uma polícia violenta e autoritária, é melhor usar o eufemismo do “caso isolado” ou dar o nome às coisas e partir para uma efetiva democratização? Não seriam aqueles que sustentam a tese do estado de exceção, no caso, os mais preocupados com a democracia e os direitos humanos?

O que torna insuportável para os legitimadores a tese do estado de exceção é que ela dá nome para algo que não tinha. Nas teorias liberais dominantes no direito, na sociologia, na ciência política e na filosofia, o máximo que esse lugar habitado pela vida exposta ao poder recebe de tratamento é a condição de “não-lugar”. Os pobres que podem ser chacinados pela polícia, como ocorreu esses dias na Bahia com a aprovação do poder público, para esses ainda não há Estado de direito. Os índios que veem suas terras invadidas, saqueadas e são torturados e mortos por oligarcas em conluio com o poder público (quando não são o próprio) são um acidente na institucionalidade estabelecida do Estado de direito no Brasil. Assim, eles podem ser no máximo um “caso negativo”, jamais seu lugar de sofrimento pode ser nomeado. É preciso rapidamente dobrar a realidade em outra camada e redescrever os fenômenos para caberem dentro da moldura do Estado de direito. E a estratégia de qualquer argumentação nesse sentido é sempre a mesma: o eufemismo.

“Porque finalmente não sabe bem se Arantes é a favor ou contra o Estado”, diz Fausto. Não respondo por Arantes, mas por nós. E a resposta é: contra o Estado. Entre eufemismos e hipérboles, ficamos com as hipérboles.