DIREITO DE IR PARA O INFERNO

“Your god is dead and no one cares
If there is a hell i will see you there ” (NIN, “Heresy”)

“I’m on a highway to hell” (AC/DC)

 

A cada dia que passa emerge mais forte e reativamente o fundamentalismo cristão como forma de contestação do avanço dos movimentos que transgridem suas regras morais. Evidente que esse fundamentalismo não é apenas um fenômeno contemporâneo. Na realidade, ele não precisava gritar antigamente simplesmente porque não era necessário. Bastava desviar seus olhos para o alvo para que imediatamente suas impiedosas sanções caíssem sobre as vítimas. Tempos que arrastam uma violência silenciosa que substitui a antiga queima de hereges e bruxas.

Os cristãos fundamentalistas reivindicam a volta dos “valores da família” (que é na realidade a família patriarcal, heterossexual, puritana e repressora), os crucifixos nas salas de audiência, lutam contra direitos de gays e mulheres, vociferam contra as diferenças em nome de uma interpretação boçal da Bíblia e da suposta “natureza”. No fundo, desejam apenas manter a mais pura violência que é o preconceito. Ao contrário do que põe Gadamer, o preconceito não é apenas uma pré-compreensão que antecede necessariamente a compreensão do mundo numa espiral hermenêutica, mas uma ação entre os viventes cuja visão esteoreotipada de um sobre o outro – independente do seu erro – produz efeitos de poder e violência. O que interessa no preconceito não é o caráter cognitivo, mas os efeitos que produz sobre a respectiva vítima.

Por essa razão, não pode haver “direito ao preconceito”, pois o preconceito não é apenas uma posição cognitiva cuja salvaguarda estaria protegida tal como a liberdade de pensamento, mas uma ação violenta que cai sobre o outro, um fazer que hierarquiza, petrifica, estigmatiza. Legitimar o preconceito é legitimar a violência. Se cognitivamente talvez seja inexorável o estereótipo como referencial mínimo de orientação, o problema é precisamente a sedimentação que os fundamentalistas e os “politicamente incorretos” defendem. Pois o problema do preconceito não foi criado por quem busca o desconstruir, mas por aqueles que o inventaram e hoje lutam para que seja mantido.

Os cristãos fundamentalistas retrucariam que se trata, no final das contas, de liberdade religiosa. Ora, nesse caso a própria estrutura religiosa do cristianismo nos dá a resposta: se é um dogma fundamental o livre-arbítrio, é preciso preservá-lo justamente contra a heresia de obrigar alguém a cumprir mandamentos religiosos. A sanção que a religião cristã propõe é a mais severa possível para aqueles que descumprem suas regras: o sofrimento eterno e indizível do inferno. Nesse caso, devemos deixar que os hereges sofram tais sanções, sem que os obriguemos a agir de forma diferentes. O religioso não deve atacar o não-religioso por meio de sanções do Estado, pondo em dúvida a própria efetividade das suas crenças no julgamento divino. Deus tratará de fazer a justiça que o Estado não deve fazer. Exatamente por isso deveríamos lutar até o fim por um direito contra todo e qualquer transbordamento de dogmas religiosos para a política: o direito de ir para o inferno.

NIKOS KAZANTZÁKS, “O CRISTO RECRUCIFICADO”

A fascinação de alguns autores contemporâneos – em especial Giorgio Agamben e Alain Badiou – pelo que se convenciona chamar de “cristianismo primitivo” (traduzido na figura de Paulo) não parece irrelevante. Contra um edifício majestoso e opulento de instituições sólidas, mas assassinas, como reagir senão com uma “grande recusa”, recuperando a promessa messiânica de um mundo totalmente outro?

O castelo que constrói Kazantzákis no seu poderoso romance é um emaranhado de cobiça, avareza, mesquinhez, descaso, mediocridade, tudo resumido na mais visível putrefação moral dos personagens (paradoxalmente chamados de “notáveis”). Nada sobra nesse mundo corrupto onde o notável recusa dar pão ao estrangeiro pelo mais puro egoísmo, quase gratuidade do mal. As pretensas “personalidades” da aldeia onde se passa o romance são figuras grotescas que parecem os juízes de Kafka a esconder revistas pornográficas em meio a livros de “doutrina”.

Nesse mundo insuportável onde o menor vestígio de resposta à hipocrisia e mediocridade é tratado como grave ofensa resta pouco da vida que merece ser vivida. Manólios e seus amigos vão buscar no ascetismo uma alternativa inicial.

Mas os estrangeiros que chegam na aldeia e passam fome precisam de ajuda – uma muito mundana ajuda – e é nesse momento que a chama da indignação e ascese do cristianismo de Manólios percebe que Cristo é o pobre que passa fome, exigindo uma justiça muito real e concreta. Não é preciso ser cristão nem acreditar em dogmas teológicos, metafísicos ou místicos para perceber aí que o cristianismo primitivo carrega uma sabedoria que obviamente incomoda o poder, pois pede justiça para o oprimido em um mundo onde essas pretensões são abafadas pela hipocrisia majestosa das instituições que a sustentam. E – de certa forma se ligando ao judaísmo – essa justiça não é um gesto de amor e perdão, mas a implacável suspensão da injustiça, ainda que a custa da violência.

Bolchevique ou cristão, não importa, Manólios é a vida nua que exclama diante da indiferença que deixa morrer. A injustiça de todos os dias e cujas instituições (pretensamente) cristãs não cansam de negar e naturalizar.  Instituições que parecem ter nascido justamente para neutralizar esse potencial subversivo, indomável, desmascarador de uma fé que nasceu para recolher os restos da história e redimi-los em meio à violência onipresente, praticando uma mensagem de amor à alteridade que acabou domesticada para conservar tudo aquilo contra o qual ela lutava.