DIREITO DE IR PARA O INFERNO

“Your god is dead and no one cares
If there is a hell i will see you there ” (NIN, “Heresy”)

“I’m on a highway to hell” (AC/DC)

 

A cada dia que passa emerge mais forte e reativamente o fundamentalismo cristão como forma de contestação do avanço dos movimentos que transgridem suas regras morais. Evidente que esse fundamentalismo não é apenas um fenômeno contemporâneo. Na realidade, ele não precisava gritar antigamente simplesmente porque não era necessário. Bastava desviar seus olhos para o alvo para que imediatamente suas impiedosas sanções caíssem sobre as vítimas. Tempos que arrastam uma violência silenciosa que substitui a antiga queima de hereges e bruxas.

Os cristãos fundamentalistas reivindicam a volta dos “valores da família” (que é na realidade a família patriarcal, heterossexual, puritana e repressora), os crucifixos nas salas de audiência, lutam contra direitos de gays e mulheres, vociferam contra as diferenças em nome de uma interpretação boçal da Bíblia e da suposta “natureza”. No fundo, desejam apenas manter a mais pura violência que é o preconceito. Ao contrário do que põe Gadamer, o preconceito não é apenas uma pré-compreensão que antecede necessariamente a compreensão do mundo numa espiral hermenêutica, mas uma ação entre os viventes cuja visão esteoreotipada de um sobre o outro – independente do seu erro – produz efeitos de poder e violência. O que interessa no preconceito não é o caráter cognitivo, mas os efeitos que produz sobre a respectiva vítima.

Por essa razão, não pode haver “direito ao preconceito”, pois o preconceito não é apenas uma posição cognitiva cuja salvaguarda estaria protegida tal como a liberdade de pensamento, mas uma ação violenta que cai sobre o outro, um fazer que hierarquiza, petrifica, estigmatiza. Legitimar o preconceito é legitimar a violência. Se cognitivamente talvez seja inexorável o estereótipo como referencial mínimo de orientação, o problema é precisamente a sedimentação que os fundamentalistas e os “politicamente incorretos” defendem. Pois o problema do preconceito não foi criado por quem busca o desconstruir, mas por aqueles que o inventaram e hoje lutam para que seja mantido.

Os cristãos fundamentalistas retrucariam que se trata, no final das contas, de liberdade religiosa. Ora, nesse caso a própria estrutura religiosa do cristianismo nos dá a resposta: se é um dogma fundamental o livre-arbítrio, é preciso preservá-lo justamente contra a heresia de obrigar alguém a cumprir mandamentos religiosos. A sanção que a religião cristã propõe é a mais severa possível para aqueles que descumprem suas regras: o sofrimento eterno e indizível do inferno. Nesse caso, devemos deixar que os hereges sofram tais sanções, sem que os obriguemos a agir de forma diferentes. O religioso não deve atacar o não-religioso por meio de sanções do Estado, pondo em dúvida a própria efetividade das suas crenças no julgamento divino. Deus tratará de fazer a justiça que o Estado não deve fazer. Exatamente por isso deveríamos lutar até o fim por um direito contra todo e qualquer transbordamento de dogmas religiosos para a política: o direito de ir para o inferno.

NOTAS SOBRE A MARCHA DAS PUTAS

Aconteceu no Canadá, em resposta a um policial estúpido que declarou para evitar assédios sexuais que as mulheres deveriam deixar de se vestir como “sluts” (traduzido pela grande mídia moralista como “vagabundas”, mas melhor ficaria “putas” – advertência procedente de @tuliavianna no twitter), a Marcha das Putas, que reivindica inverter o significante como estratégia de libertação sexual para as mulheres e repudio à violência. A longa história dessa relação – sexo e violência – foi entre outros trabalhada por Sigmund Freud, e talvez haja poucas tarefas mais urgentes para a política do que separar – das formas mais criativas  – as duas esferas.

No Brasil, ao contrário, predomina tanto no movimento feminista quanto no LGBTT o viés policialesco do “politicamente correto”. É verdade que Idelber Avelar, e antes dele Renato Janine Ribeiro, nos alerta que o termo faz parte do vocabulário neoconservador justamente com o intuito de inibir a discussão do ponto de vista dos “oprimidos”. Contudo, não podemos deixar de enxergar o ricochete que se produziu a partir do termo, com os movimentos aderindo ao estereótipo e reivindicando – por meio de políticas identitárias – aquilo que lhes era atribuído. Exemplo disso é a constante demanda pela utilização da violência do sistema penal – sobretudo criminalização e carcerização – por esses movimentos.

O que se perde com as políticas identitárias? Primeiro, é preciso ter prudência: ninguém melhor que Derrida soube equacionar bem que o rechaço parcial dessas demandas não pode nos levar, por exemplo, a perceber que há uma falsa simetria entre as duas partes (machista/feminista, homofóbico/ativista gay, racista/ativista negro etc.) e que portanto não podemos, desprezar de antemão tudo que vem desses grupos, mesmo aquilo a quem não estamos de acordo. Porém, como bem percebeu Bruno Cava no twitter, “quando se fecham na identidade, não se movimentam mais, fica estático e proto-fascista. Só a diferença mobiliza o desejo”. É precisamente isso: a identidade fecha novamente no próprio, reestabiliza o sujeito-como-indivíduo-mônada e repete o gesto individualista dos nossos tempos, transformando demandas de justiça em demandas corporativas.

A Marcha das Putas arromba esse horizonte à medida que transforma a luta das mulheres não apenas em luta da identidade-mulher, mas da forma-de-vida que é a raiz da injustiça que sustenta a opressão feminina, justificando das formas mais espúrias a violência por meio da misogenia e da repressão sexual. A fala do policial tem um duplo golpe cuja sutileza as mulheres canadenses perceberam em toda intensidade: defende a violência contra a mulher e, ao mesmo tempo, estimula o puritanismo que nada mais é do que capa da repressão sexual. Ao usarem o significante “puta” (“slut”) com o intuito transformador, as canadenses não apenas tocam no policial-concreto, mas na própria raiz do problema que possibilitou a esse policial dizer o que disse. Abriram, em síntese, um flanco no poder pelo qual penetrou a vida.

O MACHISMO NA CULTURA DA PERIFERIA

Uma das observações mais importantes que tive oportunidade de ouvir na palestra Filosofar hoje: desafios e perspectivas, do Prof. Christian Iber,  foi que a ética normativa é exercício mais insípido possível na filosofia. Não há ética sem uma análise das condições sociais que influenciam o comportamento dos indivíduos. Assim, sob certas condições é inviável exigir do indivíduo o cumprimento de mandamentos morais, sendo um exercício anódino e descontextualizador fixar, em abstrato, esses deveres. A ética, por isso, deve andar junto com a filosofia social.

Com o mesmo espírito, Giorgio Agamben pontua em O que resta de Auschwitz que Auschwitz é o ocaso da ética, onde todos os modelos até então vigorantes (da “arete” aristotélica, do “herói” grego, da “dignidade” cristã, do trágico nietzschiano etc.) caem em descrédito. Diante de figuras como o Sonderkommando e o Muselmann, há pouco a se dizer dentro dos parâmetros habituais, exatamente porque as condições a que o experimento biopolítico dos campos submete os viventes nele inseridos provocam a erosão de todos os parâmetros abstratos de julgamento da ética tradicional.

Quando leio que cresce o número de estupros no RJ, somado a outros dados que a investigação criminológica me fez conhecer, não posso deixar – evitando o vício intelectual da edificação da pobreza que, no fundo, repete o mito do “bom selvagem” – de fazer uma crítica do machismo daquele ethos que Alba Zaluar definiu pertinentemente como ethos guerreiro, consubstanciado na adoção de uma identidade de “guerreiro” do traficante da periferia (o que é traduzido igualmente na identidade do “soldado”, que MV Bill pontua nas suas músicas e é belamente retratado em Cabeça de Porco). Entre as características dessa cultura está a ideia de hipermasculinidade, exibição de símbolos fálicos (arma, poder) e “poligamia” com as mulheres do local e as “patricinhas” que vão atrás de “homens de verdade” nos morros. Esse ethos se forja sobretudo a partir do eixo do “respeito” (uma espécie de código de honra rigoríssimo e sujeito às respostas mais violentas possíveis) e das relações com a polícia, geralmente baseada em operações militares de extermínio como as que vemos retratadas em Tropa de Elite e a recente invasão do Complexo do Alemão. Na guerra (em especial na War on Drugs – assim, em inglês), é preciso de guerreiros. (É interessante observar, no entanto, como a dinâmica humilhação/respeito está presente igualmente no Norte, bastando ver o retrato traçado por Jock Young acerca do tema em A Sociedade Excludente e a própria cultura do hip hop norte-americano atual).

Portanto, esse ethos foi forjado em um contexto muito específico e de forma reativa. Evitemos o simplismo. Inclusive o simplismo de não perceber a ambivalência de que, ao mesmo tempo que a posição de mulher de bandido traduz uma condição relativamente insuficiente para a mulher, há uma cultura interessante de liberação sexual nesses locais em relação aos recalques da burguesia. Nenhuma solução simplista ou paternalista parece ser possível. Não é simplesmente uma “cultura de paz” que irá resolver essa quantidade de contradições e preconceitos em ricochete que se dão dentro desses contextos. Somente a justiça como força irruptiva pode cancelar essas divisões, abrindo a possibilidade de algo novo. Ademais, e dadas as condições estruturais que possibilitem, a transformação cultural do machismo da periferia precisa, necessariamente, vir da própria periferia, a partir das lutas micropolíticas tais como a Tati Quebra-Barraco ou outras forças emergentes que contestem o poder falocêntrico dos traficantes sobre esses espaços. O como isso será feito e o que será posto no lugar é algo que só o porvir dirá, sendo que, para não repetirmos o gesto de violência que repudiamos, as mulheres deverão ser as protagonistas dessa transformação.

POLÍTICA DO SÉCULO XXI

É muito cedo para traçarmos qualquer diagnóstico mais conclusivo sobre o que virá no século em que estamos. Mas os primeiros anos do século XXI parecem dar sinais.

O primeiro ponto é o esgotamento da narrativa moderna do progresso e da formalização liberal da esfera política. Por mais denegações que existam – especialmente aquelas que estabelecem teorizações abstratas sobre a política como se esta pudesse ser recriada em condições ideiais, despida de história, violência e memória – o avanço da filosofia e das ciências do século XX apontam para o esgotamento da ideia de um indivíduo autocentrado na consciência que delibera contratualmente com os demais acerca dos limites da sua liberdade que, no fundo, confunde-se com a propriedade. Todas as áreas – da história à biologia, da antropologia à psicanálise – desconfirmam essa tese. A imagem sobrevive agonizante no direito, na filosofia política e na teologia. Mas o contraste – em especial o contraste cultural e material – que a tecnologia moderna torna mais visível (e também mais invisível) mostra que mesmo o discurso dos direitos humanos (com toda lógica que lhe é implícita, em especial a do cosmopolitismo) já não soa tão convincente quanto no final da Segunda Guerra Mundial.

A teologia do mercado do final do século XX, apelidada por aqui de “neoliberalismo”, igualmente agoniza ao lado do seu rival, o “Welfare State” e todo seu caminhão burocrático. São possibilidades que implodiram a si próprias: o Welfare pela elevação da qualidade de vida que provocou revoluções culturais e insustentabilidade financeira; a teologia de mercado pela quebradeira dos últimos anos, apesar de ainda existirem “lacaios da burguesia” (expressão de Adorno que mereceria uma retomada) capazes de justificar tudo e sempre, eufemisticamente chamando de “crise” aquilo que é um evidente efeito da própria estrutura que supostamente estaria abalada.

Por fim, o “projeto Huntington” de transformar o século XXI em um “Choque de Civilizações” ruiu com as revoluções árabes desse ano, cujo teor escancarou que a representação do árabe (e em especial do islâmico) como “outro-barbáro” é uma forma de escamotear a dominação material e cultural que perdura por séculos do Ocidente em relação àquelas regiões. (Estratégia, diga-se de passagem, nada inédita.) O “Choque de Civilizações” ficou apenas para os dois pólos fanáticos, ou seja, os fundamentalistas cristãos dos EUA e os fundamentalistas islâmicos da Al-Qaeda.

O que temos, então? Acredito que vivemos uma reconfiguração da polaridade esquerda/direita. Uma das formas de visualizar as perspectivas históricas de forma mais errônea é acreditar que a história é uma linha do tempo, isto é, aquilo que está atrás foi necessariamente apagado pelo que vem na frente. Na realidade, os tempos continuam existindo, o que significa que  esquerda e direita tradicionais continuam lutando nos seus mesmos termos (nos termos que, digamos, a Veja coloca a questão). Mas, ao mesmo tempo, testemunhamos a emergência de novos campos políticos, dos quais eu destacaria pelo menos três:

– O “Projeto da Direita” (falta um nome melhor), cujas estratégias são simplesmente colocar em ação todo aparato possível do estado de exceção a fim de conter os marginalizados espalhados pelo mundo, sobretudo a partir das políticas de imigração e da política criminal de encarceramento massivo, ao mesmo tempo em que garante àqueles que estão acima da linha da cidadania todas as benesses da sociedade de consumo (mantendo ambiguamente em vigor os velhos conservadorismos morais ao lado da pura performance);

– O “Projeto Chinês” (traduzido mundialmente como BRIC)  – que consiste na utilização da sociedade do consumo como mecanismo inclusivo dos pobres e mantém plenamente vigente a matriz exploratório-industrialista da Modernidade como forma de reduzir a desigualdade social. Esse projeto é também tecnocrático, à medida que propõe uma despolitização geral como forma de evitar as polêmicas da Guerra Fria (da qual é herdeiro) e busca promover a transformação social a partir das próprias armas que a obstaculizam;

– O “Projeto (mas aqui “projeto” não cai bem) da Sustentabilidade”, – que engloba  multiplicidade de perspectivas que se encontram no ponto em comum de propor um novo modelo de relação com o mundo, abrangendo tanto a exploração ambiental, a relação com outros viventes, a reconfiguração do espaço urbano, rediscussão da propriedade (em especial da propriedade intelectual), quesitonamento radical do utilitarismo naturalizado a partir da dádiva e a recuperação das energias revolucionárias não-violentas que se voltam contra a dominação sangrenta exercida hoje em dia (ainda que por vezes travestida – e a palavra é aqui importante – na forma da democracia liberal e do mito do contrato social).

Todos esses pólos são condensações de uma complexidade imensa. Esses são apenas alguns elementos que eu vislumbro na política do século XXI que procuram traçar um mapa do nosso cenário.

NA COLÔNIA PENAL

Um dos principais pontos críticos a alguns movimentos sociais ou, dizendo melhor, a alguns setores de alguns movimentos sociais é o desconhecimento completo do funcionamento da máquina punitiva e da lógica de funcionamento do sistema penal que reivindicam como elemento de emancipação social.

Somente a cegueira em torno do como funciona essa máquina pode ainda legitimar movimentos que buscam a justiça – entendida aqui simplesmente como a interrupção da violência infligida pelo poder e muitas vezes legitimada pelo direito – a acreditarem na utilização do sistema penal como mecanismo “educativo” ou algo do gênero. Só mesmo desconhecendo o efetivo atuar da máquina punitiva sobre a vida é possível ainda assim – de uma perspectiva que se considera ética – defendê-la. A ingenuidade dos que desconhecem ser a seletividade (isto é, a punição apenas aos vulneráveis ao poder punitivo) um dado inerente ao funcionamento do sistema penal é quase indecente diante de mais de 20 anos de trabalhos criminológicos acerca disso.

É verdade que é nojento, profundamente repugnante, observar como sonegadores de tributos, espancadores de mulheres e policiais torturadores – para ficar em apenas três categorias bastante representativas – se quedam realmente impunes por serem ricos, homens ou serviçais do poder. Por isso, é óbvio que essas demandas não podem ser tratadas da mesma forma que hipócritas discursos niveladores que buscam suavizar toda dureza do real com ficções jurídicas e palavreado literalmente alucinado. Elas têm um desejo de justiça importante, uma revolta contra a hipocrisia de um sistema que despeja toda sua violência sobre os marginais (estejam na posição de vítimas ou autores), aplicando seletivamente seus supostamente universais direitos e garantias.

Esses movimentos deveriam saber, no entanto, que a máquina com que estão lidando não traz qualquer possibilidade de assemelhar-se à ideia de justiça. Na realidade, a punição é provavelmente o que elide a verdadeira justiça. Tomemos um exemplo simples: o racismo. É inequívoco que milhares de pessoas praticam todos os dias atos de racismo. Mas – diante da constatação que grande parte do racismo com que convivemos é de caráter inconsciente e estrutural – não é precisamente a ideia de punição do “racista” particular o contrário disso? Para pensarmos no crime de racismo da forma como foi colocado, deveríamos partir do pressuposto de que o racismo é exceção. Mas e se o racismo for a regra, como fica a questão? Olhada do ponto de vista sociológico e até psicanalítico, o sacrifício de bodes expiatórios (os “folk devils”) é aquilo que permite dizer: “não somos racistas, ele é e está sendo punido por isso”, quando sabemos que isso não é real. Por outro lado, nenhum aparelho do Estado é mais profundamente e explicitamente racista que o sistema penal. Via de regra – o próprio caso da Massa Crítica é exemplo disso (embora não estivesse pensando nele quando escrevi): a concentração das energias de resposta à violência que cai sobre a vida no aspecto punitivo mantém a estrutura que permite a violência intacta ao custo do sacrifício de um bode expiatório. Antes de um desvio de um motorista maluco, o caso é uma imagem da própria violência no trânsito das grandes metrópoles. Ainda mais cruel do que o atropelamento dos ciclistas é saber que muitos outros motoristas se aliviam do mesmo desejo purgando sua culpa no bode expiatório sacrificado ao público. E que, se reservada à discussão exclusivamente ao aspecto punitivo, perde-se o essencial: a possibilidade de real transformação dessa paisagem urbana.

É essa mesma manobra que tem produzido a despolitização geral da sociedade, pois não é outra coisa que aqui importa senão a política, a esfera das nossas formas-de-vida: ao deslocar todo conflito político para o âmbito moral, mantemos intacta a estrutura que o sustenta, evitando o desconforto do trauma por meio da particularização para um indivíduo. O que é necessário atacar, ao contrário, não são os indivíduos particulares, em especial com a punição, mas aquilo que permite a violência do instante. Ao apostar no sistema penal nas suas funções declaradas (que esse sistema jamais cumpriu) ou simplesmente no Terror (estrutura eufemisticamente denominada “prevenção geral negativa” pela dogmática penal), está-se reproduzindo a violência que se quer erradicar, alimentando justamente a máquina de sacrifício ritual que permite ao status quo manter-se intacto. A tentativa de instrumentalização invertida do sistema penal por parte da esquerda é tão inteligente quanto uma criança brincando com uma serra elétrica ligada. O fascismo cotidiano – esse que está por trás do machismo, da homofobia, do racismo, da xenofobia, enfim, do ódio a toda diferença – deleita-se com essa máquina, se abastece constantemente dela, faz dela seu principal instrumento de prazer.

Max Horkheimer certa vez ironizou os positivistas pelo seu apego à estatística. Segundo ele, enquanto para os positivistas seria necessário o maior número possível de casos, para nós bastaria um único para mostrar a própria realidade. Tudo depende de se levar a sério essa afirmação. É preciso tomar a conflitualidade social de forma radical, isto é, vendo-a como sintoma da Totalidade que, ao fim e ao cabo, é o que ainda mutila a vida e cuja desconstrução é a tarefa de um pensamento que ainda busque a justiça.

TRANSGRESSÃO E RESPONSABILIDADE

Uma das coisas que mais horroriza as mentalidades medíocres é a transgressão da regra. Segundo esse pensamento, a norma deve ser cumprida a qualquer custo, ainda que seu cumprimento seja a própria injustiça. É a “ética de Eichmann”, uma deturpação da moral kantiana, consistente na obediência irrestrita da regra e desresponsabilização pessoal pelo seu cumprimento. Eichmann, como dizia Hannah Arendt, não era especialmente perverso, mas fundamentalmente medíocre.

É um paradoxo que no ponto em que se está em maior conformidade com o poder – no cumprimento irrestrito de uma norma – se está igualmente no de menor responsabilidade, pois tudo que o “disciplinado” gostaria de invocar em seu favor é o contraste com o “irresponsável” transgressor. E, no entanto, ele, o disciplinado, é quem abdica de questionar a legitimação da sua ação para cumprir irrestritamente uma ordem, que por sua vez encontraria respaldo na ordem como um todo, isto é, na manutenção da Totalidade.

É claro que nem toda transgressão carrega consigo uma convicção que afronta o poder e se põe responsável por si mesma. Mas o ponto da verdadeira liberdade – o que tem tantos nomes, mas chamamos por aqui de  ingovernável – é justamente aquela ação que se responsabiliza integralmente por si mesma, sem qualquer álibi. Só há liberdade no ponto em que a ação não simplesmente coincide com a norma, mas a desativa, torna inoperante a partir da sua “superação”, tornando-se totalmente responsável por si mesma. Nesse nível, a liberdade coincide com a felicidade, e não com a propriedade.

Quando leio que na Líbia persistem os massacres da população e que seu ditador mostra claramente sinais de insanidade, tento imaginar como ainda podem existir indivíduos que cumprem as ordens desse sujeito. É graças a esses soldados – escravos de uma ordem abstrata – que os massacres ainda continuam. A “banalidade do mal” persiste. A mediocridade continua cultivando o fetiche da norma. Nesse caso, o sujeito ético só pode aparecer na transgressão. O terror de Estado – e não custa lembrar isso no nosso contexto brasileiro, onde parece viger o “Programa de Aceleração do Esquecimento” – só existe porque há Eichmanns dispostos a cumprir qualquer regra, desde que ela emane do poder.

Como evitar que essas subjetividades se proliferem? Não vejo porta de saída senão pela educação, e isso nos deveria abrir os olhos para o fato de que a educação é exatamente o oposto do que as demandas conservadoras gostariam que ela fosse: a simples imposição de regras. Educar não pode ser outra coisa que tirar da zona de conforto, desarticular, desestabilizar, desconstruir a violência da Totalidade para que enfim apareça a nudez do Rei. A consciência dessa nudez é também a consciência da nossa infinita responsabilidade.

RADIOHEAD E A DESCONSTRUÇÃO DO “CARROCENTRISMO”

Alguns têm dificuldade intensa de entender que em certos fenômenos pulsa uma vibração que reflete o seu tempo como um todo. É o caso do carro para a cultura do século XX e, mais do que nunca, para a do século XXI. Essas pessoas – geralmente de leitura excessivamente literal do que está sendo escrito – não percebem que o problema não é o automóvel em si mesmo, mas o “carrocentrismo”, isto é, a dominação de toda ecologia urbana pela figura do automóvel. A demolição das paisagens e o trânsito selvagem são os principais reflexos dessa dominação. Uma imagem de Porto Alegre expressa bem essa dinâmica: o antigo cinema Baltimore, antes concentração cultural e espaço de convivência entre diversas “tribos urbanas”, deu lugar a um estacionamento.

Nenhuma banda soube expressar com tanta precisão a desolação de um mundo feito de fumaça, barulho e borracha do que a grande crítica da urbe contemporânea: o Radiohead. Evidentemente, se “Ok Computer” é o próprio espelho da contemporaneidade na sua dinâmica vazia e glacial, não poderia deixar de tratar do automóvel de forma ácida e central. Mas a crítica à cultura automobilistíca começa já com “Stupid Car”, b-side da época do longíquo “Pablo Honey”, presente no “Drill EP”, de 1992. Na canção, Thom fala de um acidente a que sobreviveu:

Pouco tempo depois, a banda retorna ao tema de forma ainda mais ácida e musicalmente mais elaborada em “Killer Cars”, b-side do álbum “The Bends” (1995). É possível notar a sonoridade típica do álbum com riffs empolgantes, refrões suculentos e melancolia desiludida:

E, como já disse, não poderia “OK Computer” (1997), o mais completo espelho do final do século XX, deixar de tratar da temática como inerente à frieza das relações nos nossos dias. O álbum já inicia com “Airbag”, uma suave ironia que se intitularia “An airbag saved my life”, como que a expressar uma vida colonizada pela tecnologia de tal forma que apenas esta ainda é capaz de lhe dar sentido. Na canção, nota-se a evolução do som para o nível supremo, mesclando elementos eletrônicos com um belíssimo riff de guitarra de Johhny Greenwood:

Por fim, a melancólica “Let Down”, também de “Ok Computer”, na qual os transportes, as vias de trânsito e as lihas férreas povoam o mesmo cenário em que os solitários desencantados e vazios de sentimentos mesclam-se às garrafas, numa sufocante rotina acinzentada e opaca. Ei-la:

PS: Nenhum dos clipes é oficial.

O HORROR! O HORROR!

A conhecida frase de Joseph Conrad é a precisa sinalização de um ponto do qual se teve absoluta consciência apenas no século XX: o perfeito encontro entre civilização e bárbarie ou, dito de outra forma, o momento em que a civilização é bárbara.

A medula do século XX que inspirou tantos filósofos e sociólogos é justamente a constatação de que o progresso técnico-industrial típico do otimismo moderno não havia encaminhado as sociedades para um estado superior, para uma boa vida, e sim para um inferno particularmente inóspito que substituía uma barbárie por outra. Essa é a consciência que ilumina em especial as obras de Adorno e Benjamin, entre outros, e que levou o último a afirmar que todo monumento de cultura é também um monumento de barbárie. Conrad sintetizou tudo isso com a expressão “O horror!”, proferida por um enviado da “civilização” que confidencia a absoluta barbárie escondida por trás das luzes.

Hoje, essa consciência ainda permanece perfeitamente atual. O progresso técnico incomparável dos últimos 50 anos não nos levou a uma sociedade onde a vida é qualificada, mas a uma espécie de barbárie high-tech, onde os chicotes foram substituídos por buzinas e as facas e pistolas por pedais de acelerador. Não são os habitantes do medievo brasileiro, aqueles que ainda não tiveram acesso à Modernidade –  a vida nua nas favelas, palafitas e morros brasileiros –  o retrato fidedigno da nossa barbárie. Ela se expressa antes em carros blindados e bem polidos, na selvageria do desfile barulhento e nauseante da fumaça, da borracha, da buzina e do motor.

Nada poderia testemunhar essa barbárie com mais veemência do que o atropelamento dos ciclistas da Massa Crítica em Porto Alegre. Independentemente das circunstâncias particulares, o evento apresenta uma imagem que é a própria expressão da barbárie cotidiana em que vivemos: a Massa Crítica é atropelada por um veículo. As imagens do cotidiano às vezes falam mais do que qualquer argumento.

A Massa Crítica, um coletivo horizontal e anarquista com o certeiro lema “pedalando por um mundo mais respirável” é violentamente agredida por um ser simbiótico (homem/carro) intoxicado pela dinâmica urbana regida pelo imperativo da pressa, paranóia e guerra de todos contra todos, não é a própria expressão do fascismo reagindo contra a diferença? O ódio violento, a vontade desesperada de erradicar qualquer dissonância e singularidade que arranhe a Totalidade materializada no trânsito não é o gesto mais comum e infelizmente repetido do fascismo cotidiano ainda não destruído? O constrangimento com que se noticia e as instituições respondem – inclusive chamando o fato de “acidente” – não é uma mea culpa constrangida por tratarem toda manifestação política como uma “interrupção do fluxo de automóveis”? Nada, afinal, deveria interromper o fluxo de automóveis, hoje a imagem sinistra e doentia da própria Totalidade.