É difícil analisar o Brasil atual, entre outras razões, pelo efeito performativo. Como as peças estão muito soltas, tudo que é dito de certa forma ocupa espaço na bagunça e isso tem feito alguns intelectuais jogar fora os últimos pingos de credibilidade que ainda restam, considerando que credibilidade se conquista com independência, não adesismo, e que se espera de um intelectual algo diferente da manipulação. Infelizmente, no entanto, as regras de compartilhamento são outras: o que está a favor do meu lado é bom, e vice-versa. É interessante o paradoxo de que todo mundo critica (com razão) a má qualidade do trabalho da mídia no Brasil (até a direita não raro faz isso), mas as mesmas pessoas compartilham qualquer porcaria que leem, mesmo que visivelmente inconsistente. Este post é uma pequena tentativa errática de esboçar a situação atual.
Primeiro, a polarização básica. Governistas chamam manifestantes de burgueses, coxinhas e elite branca e manifestantes chamam governistas de petralhas, corruptos e comunistas. Até aí nada de novo. E são centenas de artigos por aí para mostrar que ambos estão no mínimo parcialmente errados. De um lado, os governistas erram no diagnóstico ao associar os manifestantes apenas à “Casa Grande” e explicar a motivação pelos programas sociais. O primeiro erro desse raciocínio é que não é apenas a alta burguesia a protestar, mas também os pequenos comerciantes e algumas categorias que estão na “classe trabalhadora”, os “batalhadores” ou, em marxistês, a pequena burguesia. Situação que aos olhos petistas deve ser insuportável, já que, fora talvez a extrema miséria, nenhum outro setor da sociedade brasileira foi tão contemplado pelas políticas do PT quanto esse, especialmente com créditos e aumento do salário mínimo. Embora dividida, a classe dos “batalhadores” é muito suscetível ao discurso moral e politicamente conservadora, tendo se tornado lulista por conversão. Isso leva ao segundo erro: o de diagnosticar que os programas sociais são a motivação. Sim, é verdade que a elite e a classe média detestam os programas sociais e têm alergia ao PT na maioria dos casos por preconceito de classe. Que o discurso desse setor “Miami” é horroroso e simplório. Mas não pode ser por isso que estão ocorrendo protestos, simplesmente porque o PT executou vários desses projetos nos últimos dez anos sem que tenha havido qualquer tipo de revolta mais forte contra. O que motiva os protestos é o autointeresse dos indivíduos dessas classes que sentem no bolso a recessão econômica, e já faz algum tempo. Bolsa-família deixa muita gente brava, mas ninguém sai pra rua para protestar por isso. O que motiva é o bolso. A votação significativa de Aécio mostra que as mentiras de Dilma não penetraram com a mesma força nesse público mais calculador e utilitarista, já tendo a irresignação se expressado durante o pleito. A adoção das medidas de corte de gastos, curiosamente o mesmo que Aécio faria, apenas escancarou a situação, fazendo com que o governo perdesse ainda mais credibilidade (já que denegava a existência de crise durante as eleições). Assim, a explicação que coloca na conta dos programas sociais a revolta da elite e classe média é parcialmente verdadeira; o verdadeiro catalisador é a defesa dos seus próprios interesses (econômicos). A elite, em especial e contrariando a tese de aversão à mobilidade social, estava já mexendo muitos pauzinhos para lucrar com a ascensão dos batalhadores. Por mais que no cochicho vigorasse o preconceito, no geral o processo era visto como oportunidade para negócios. A crise econômica estancou todo esse processo, a elite voltou à oposição veemente e a classe dos batalhadores, ainda que dividida, em boa parte voltou para o seu lugar natural mais conservador.
O que está em jogo, portanto, em boa parte é a capacidade de o PT gerir eficientemente o status quo no seu pacto de conciliação entre classes. Muitos intelectuais – cito Vladimir Safatle como exemplo – anunciavam há muito tempo que o pacto lulista estava esgotado nas suas possibilidades em relação à esquerda. A questão agora é simplesmente o quanto ele consegue segurar o PT no governo (o que hoje raramente coincide com possibilidades da esquerda). Quando caíram as bases do pacto conservador (o enriquecimento de todos), o PT perdeu parte dos 80% de aprovação que tinha no fim da gestão Lula. No entanto, o problema aqui não é o potencial transformador ou revolucionário do PT, apenas a incompetência na gestão técnica do pacto. É contra isso que a elite branca protesta, ainda que ela não possa deixar de expressar ódio e ressentimento de classe. Se o PT, diante do esgotamento do lulismo, tivesse adotado medidas como as “reformas de base” de Jango, a conjuntura seria totalmente outra e aí sim seria possível comparar a situação atual com as vésperas de 1964, com um governo emparedado por uma elite que quer bloquear avanços sociais. E o PT teve essa chance no mínimo duas vezes, talvez três (no início do mandato de Dilma, com a aprovação recorde; nas Jornadas de Junho e talvez depois dessas eleições, quando foi eleito pela esquerda do “voto crítico”). Mas para isso seria necessário ao PT fazer algo que ele não está disposto: arriscar perder. Como a principal preocupação é se manter no poder (sob motivações diversas, de boa e má fé), propor reformas radicais nas estruturas brasileiras está fora de questão. Se Dilma cochichasse para Mercadante ou Rosseto: “se a elite está contra mim, vou radicalizar e propor as reformas. Se me derrubarem, caio de pé”, o cenário seria totalmente outro. Mas esperar isso, sinceramente, é muita ingenuidade depois de 4 anos de governo desastroso na área política. A tendência que estamos testemunhando é exatamente a inversa: continuar cuspindo nos aliados de esquerda e tentar reconstruir o pacto conservador com medidas de direita que apaziguariam o cenário.
De outro lado, por óbvio que a oposição é casuísta e nem preciso comentar a mentalidade antipetista, tal é o nível de estultice. A acusação de corrupção contra Dilma e o PT elege-o como bode expiatório, já que sabemos que o PMDB, por exemplo, está ainda muito mais afundado que o seu recente novo sócio. Sem falar do papelão da Arena (PP), recentemente mostrando que a corrupção não tem nada de fato novo no Brasil e que a Ditadura não era um oásis de homens honestos. A eleição do PT como emblema da corrupção é seletiva e carrega consigo uma má explicação para o cenário econômico, a de que o país está em crise devido ao aumento da corrupção. Isto simplesmente não é verdade, o que não torna o PT menos culpado por conduzir um governo corrupto e não permite desresponsabilizar os que estão aí jogando a culpa para trás. Além disso, os protestos “paneleiros” não conseguem deixar de mostrar ódio de classe, preconceitos diversos e pautas confusas que estão longe de significar algum tipo de fato positivo para a política brasileira. A mobilização reacionária é um sinal de pessimismo desorganizado, tal como acontece em grandes grupos do Facebook de “revoltados” que na realidade são os mais conformados com a situação atual, postulando apenas meia dúzia de gambiarras para adequar as políticas públicas aos seus interesses. Essas mobilizações também devem sofrer o efeito da desorganização, combinando tendências diferentes que já estão em disputa por espaço, e pelo fato de o rótulo “golpista”, “coxinha” ou “elite branca”, apesar dos pesares, ter tido sim um efeito de problematização que perturbou a unidade desses movimentos. A própria associação entre impeachment e golpe produz um efeito desmobilizador ou no mínimo uma cautela entre diversos setores que integram esse campo. Juridicamente, aliás, o impeachment pressupõe crime doloso, figura complicada de se provar em caso de suposta omissão. Em todo caso, o próximo domingo deve ser de grandes aglomerações; vamos ver qual é o potencial dessas massas que sairão às ruas com certeza.
A aposta de Dilma, bastante arriscada, é na renormalização do sistema político depois de um certo abalo. Com o enfraquecimento do Congresso pelas investigações da Lava-Jato, os parlamentares não terão moral para enfrentar com os dentes para fora o Governo. Essa tendência já se refletia no fim-de-semana, não fosse o pronunciamento totalmente desastrado e inoportuno da própria Dilma, que trouxe de volta os holofotes para si. O PSDB, a partir de Fernando Henrique Cardoso, já mostrou que não quer o impeachment, em especial porque não deseja ser investigado. Há sinais por aí indicando que, se as manifestações forem excessivamente confusas e tumultuadas, a panela pode esfriar e se instituir um novo equilíbrio peemedebista, ainda que com a oposição do PSDB mais forte. Marina Silva, outra força política de peso (teve 1/4 dos votos nas últimas duas eleições), continua calada, sem se posicionar em um cenário que exigiria sua apresentação [hoje, 14/3, Marina se posicionou].
O governo (não o governismo) aposta também que movimentos de esquerda que poderiam enfraquecer ainda mais seu mandato irão arrefecer para evitar o risco do impeachment, tirando o pé do acelerador. Resta a sinuca de bico para a esquerda. Ver a ascensão conservadora, que provavelmente será forte no próximo dia 15, sem poder aderir a um governo que nada tem para oferecer e correndo o risco de aumentar os números dos reacionários torna a decisão difícil. Mobilizar suas forças reconhecendo que o PT não é mais um aglutinador parece mais que necessário, “organizando o pessimismo”, como disse Benjamin certa vez. No entanto, considerando as prisões políticas e perseguições policiais promovidas contra manifestantes no ano passado, os movimentos ainda não conseguiram retomar a força de 2013. O cenário é mais fértil para pensamentos menos complexos que aquele que pretende superar a falsa polaridade, ainda que o PSOL já comece, por exemplo, a dar sinais que a reconhece. Junho pode se repetir, mas dessa vez com a direita preponderando na relação figura/fundo, ao contrário do que ocorreu originalmente. Permanece a sinuca de bico: a esquerda não quer, de forma alguma, apoiar os reacionários que são seus principais inimigos, mas ao mesmo tempo tem o dever político de protestar com um governo desastroso em andamento que não dá qualquer sinal de virada à esquerda e por isso não tem a força de mobilizar mais que os alinhados automáticos. Será que Dilma oferecerá alguma migalha para movimentos mais simpáticos ao seu governo, como o MTST, ou continuará esperando que o momento passe, fazendo a aposta arriscada do abafamento e renormalização? É a pergunta que se apresenta para os próximos dias. O fato é que a direita virá forte no próximo domingo e ainda não sabemos as consequências que isso irá gerar.
Curtir isso:
Curtir Carregando...