ALÉM DO DIREITO

O Direito é uma prisão infernal na qual todas as portas de saída parecem conduzir ao centro do labirinto. No entanto, há saída, embora se trate de uma pequena fresta a partir da qual se abre um mundo tão obviamente exposto que coramos diante da possibilidade de ter um dia o esquecido. Basta botar a cara para fora para conseguir respirar. E para isso não é necessário grande esforço, salvo o de trocar as companhias, ainda que isso não signifique necessariamente ter de abandonar velhos amigos, nem desfazer uma história de vida. Trata-se, simplesmente, de trocar de assunto.

Os juristas acreditam realmente que estão no centro do mundo. Há juízes que declaram por aí: “na prática é outra coisa!”, como se os castelos kafkianos das paredes geladas dos fóruns, a papelada dos processos e a sisudez da sala de audiência tivesse alguma coisa em comum com a vida que vivemos fora desses ambientes intragáveis, insuportáveis, esses porões do inferno onde se decide muitas vezes de forma burocrática questões que mereceriam ser levadas mais a sério.

Duas coisas merecem ser pontuadas nesse exercício de descentramento necessário.

Primeira: o mundo da “justiça” – essa palavra inglória que tomou lugar de uma demanda fundamental para nomear o aparato burocrático a fim de escamotear o que realmente falta na realidade – não é relevante para as pessoas que não o habitam. As pessoas resolvem a quase totalidade dos seus problemas de outras maneiras e enxergam esse universo autorreferente de forma totalmente diferente que seus integrantes – críticos ou convencionais – enxergam. Obviamente, isso é imperceptível para quem só frequenta esses ambientes e só dialoga com gente da área.

Segunda: a confusão entre o direito – os “tipos jurídicos” – e a vida é a confusão fundamental cujos efeitos são a captura da experiência pelos dispositivos burocráticos jurídicos na nossa época. É mais do que necessário, por fim, transpor, romper com a discussão estritamente hermenêutica – que presume perfeitamente legítimo todo direito instituído – e caminhar na direção política de questionar a própria ontologia do direito. É necessário transpor essa ponte, dar passos mais largos, saltar em direção ao novo. Por isso, a crítica ao direito deve superar a figura do juiz e o que é correto ao juiz executar (em síntese, uma discussão de legalidade) para penetrar na própria legitimidade do direito enquanto fenômeno burocrático que captura a vida.

Pensar o direito criticamente não é pensar um direito crítico, mas a crítica ao direito.

NOTAS SOBRE A MARCHA DAS PUTAS

Aconteceu no Canadá, em resposta a um policial estúpido que declarou para evitar assédios sexuais que as mulheres deveriam deixar de se vestir como “sluts” (traduzido pela grande mídia moralista como “vagabundas”, mas melhor ficaria “putas” – advertência procedente de @tuliavianna no twitter), a Marcha das Putas, que reivindica inverter o significante como estratégia de libertação sexual para as mulheres e repudio à violência. A longa história dessa relação – sexo e violência – foi entre outros trabalhada por Sigmund Freud, e talvez haja poucas tarefas mais urgentes para a política do que separar – das formas mais criativas  – as duas esferas.

No Brasil, ao contrário, predomina tanto no movimento feminista quanto no LGBTT o viés policialesco do “politicamente correto”. É verdade que Idelber Avelar, e antes dele Renato Janine Ribeiro, nos alerta que o termo faz parte do vocabulário neoconservador justamente com o intuito de inibir a discussão do ponto de vista dos “oprimidos”. Contudo, não podemos deixar de enxergar o ricochete que se produziu a partir do termo, com os movimentos aderindo ao estereótipo e reivindicando – por meio de políticas identitárias – aquilo que lhes era atribuído. Exemplo disso é a constante demanda pela utilização da violência do sistema penal – sobretudo criminalização e carcerização – por esses movimentos.

O que se perde com as políticas identitárias? Primeiro, é preciso ter prudência: ninguém melhor que Derrida soube equacionar bem que o rechaço parcial dessas demandas não pode nos levar, por exemplo, a perceber que há uma falsa simetria entre as duas partes (machista/feminista, homofóbico/ativista gay, racista/ativista negro etc.) e que portanto não podemos, desprezar de antemão tudo que vem desses grupos, mesmo aquilo a quem não estamos de acordo. Porém, como bem percebeu Bruno Cava no twitter, “quando se fecham na identidade, não se movimentam mais, fica estático e proto-fascista. Só a diferença mobiliza o desejo”. É precisamente isso: a identidade fecha novamente no próprio, reestabiliza o sujeito-como-indivíduo-mônada e repete o gesto individualista dos nossos tempos, transformando demandas de justiça em demandas corporativas.

A Marcha das Putas arromba esse horizonte à medida que transforma a luta das mulheres não apenas em luta da identidade-mulher, mas da forma-de-vida que é a raiz da injustiça que sustenta a opressão feminina, justificando das formas mais espúrias a violência por meio da misogenia e da repressão sexual. A fala do policial tem um duplo golpe cuja sutileza as mulheres canadenses perceberam em toda intensidade: defende a violência contra a mulher e, ao mesmo tempo, estimula o puritanismo que nada mais é do que capa da repressão sexual. Ao usarem o significante “puta” (“slut”) com o intuito transformador, as canadenses não apenas tocam no policial-concreto, mas na própria raiz do problema que possibilitou a esse policial dizer o que disse. Abriram, em síntese, um flanco no poder pelo qual penetrou a vida.

OS RURALISTAS DAS IDEIAS

No Brasil o adjetivo “ruralista” representa os donos de grandes propriedades não-urbanas, herdeiros das capitanias hereditárias, que embalam o “agronegócio” nacional “aquecendo” a economia com exportação, investindo em tecnologia e muitas vezes devastando o meio ambiente, geralmente para criação bovina ou monocultura. O interessante é que, apesar do aberrante tamanho de tais propriedades e da sua filiação “legítima” muitas vezes duvidosa (seja pela certidão de nascimento violenta na “fundação” do Brasil, seja por atos menos “gloriosos” como grilagem e ocupações violentas), pouco se questiona acerca disso. Com uma forte campanha difamatória que envolve manipulações grosseiras – mas geralmente ilude cabeças preguiçosas – o MST, por exemplo, é demonizado.

Em parte, está-se tentando fazer algo parecido com a questão da pirataria na Internet. Em vez de se perceber a virtude de novas formas de compartilhamento que rompem com a troca simétrica do capitalismo, não raro os mesmos que criticam os ruralistas (entre os quais um intelectual gaúcho que adora ironias) agora se tornaram ruralistas das ideias. Querem transformar a cultura em propriedade privada, como se o intelecto humano não fosse, por definição, público (o que sabemos bem desde que a ideia do autor-gênio moderno – em especial romântico – desabou). Em vez de observar o potencial desse compartilhamento que rompe com nosso modelo social e inaugura uma nova época, da qual fazem parte uma série de movimentos transversais que vão ganhando corpo pela Internet, preferem reagir de forma agressiva e estigmatizadora, etiquetando a “pirataria” de forma criminosa. (Aliás, não deveria ser novidade para esse intelectual que pelo menos desde Durkheim sabemos que inúmeros transformadores foram, no início, etiquetados como criminosos.)

Desde que venho defendendo a circulação livre de cultura, baseado no fato de que cultura não é “patrimônio”, mas forma-de-vida, tenho recebido tweets desse naipe:

(1) você pode recorrer ao Estado para obter os livros por meio de bibliotecas. É seu direito;

(2) se você não tem dinheiro, peça de presente um livro;

(3) você pode pedir o livro emprestado a um amigo;

(4) existem bibliotecas. Já ouviu falar?

(5) baixar livros é se apropriar indevidamente do conhecimento;

(6) quem defende baixar livros são “adolescentes anarquistas irresponsáveis”;

(7) quem defende baixar livros é como os “militares obscurantistas”;

Etc.

Enfim, coisas que eu jamais teria pensado sozinho e das quais eu não tinha nenhum conhecimento, p.ex., a existência de bibliotecas. O que esse pessoal de argumentos fracos – não por acaso do campo jurídico, onde os argumentos são tão abundantes quanto superficiais – não pode responder é, por exemplo, se uma pessoa que não dispõe de 100 reais para adquirir um livro de Heidegger deve ser privada de lê-lo. Da mesma forma, que os downloads não diminuem o volume de livros comprados, apenas diversifica. Além disso, como aconteceu na música, provavelmente será o declínio do jabá (e tem muita gente perdendo muito dinheiro com isso).

Em todo caso, as reações são sinal do mais profundo desespero. Pois, por exemplo, como chamar de obscurantista quem dissemina conhecimento? Ou por acaso a pseudoironia desse pessoal irá sustentar que isso não é disseminação, mas roubo (e se for, o problema está no ladrão ou no policial)? O desespero vem do fato que chamei aqui de “obsolescência do capitalismo”, ou seja, como o regime de propriedade e troca simétrica típica do ethos capitalista está trancando o desenvolvimento de novas tecnologias. A colisão está se tornando cada vez mais intensa e irá, fatalmente, desembocar numa reestruturação radical cujos rumos ainda não podemos prever, mas que certamente retirará as máscaras dos ruralistas das ideias mostrando o que realmente são: reacionários.

O MACHISMO NA CULTURA DA PERIFERIA

Uma das observações mais importantes que tive oportunidade de ouvir na palestra Filosofar hoje: desafios e perspectivas, do Prof. Christian Iber,  foi que a ética normativa é exercício mais insípido possível na filosofia. Não há ética sem uma análise das condições sociais que influenciam o comportamento dos indivíduos. Assim, sob certas condições é inviável exigir do indivíduo o cumprimento de mandamentos morais, sendo um exercício anódino e descontextualizador fixar, em abstrato, esses deveres. A ética, por isso, deve andar junto com a filosofia social.

Com o mesmo espírito, Giorgio Agamben pontua em O que resta de Auschwitz que Auschwitz é o ocaso da ética, onde todos os modelos até então vigorantes (da “arete” aristotélica, do “herói” grego, da “dignidade” cristã, do trágico nietzschiano etc.) caem em descrédito. Diante de figuras como o Sonderkommando e o Muselmann, há pouco a se dizer dentro dos parâmetros habituais, exatamente porque as condições a que o experimento biopolítico dos campos submete os viventes nele inseridos provocam a erosão de todos os parâmetros abstratos de julgamento da ética tradicional.

Quando leio que cresce o número de estupros no RJ, somado a outros dados que a investigação criminológica me fez conhecer, não posso deixar – evitando o vício intelectual da edificação da pobreza que, no fundo, repete o mito do “bom selvagem” – de fazer uma crítica do machismo daquele ethos que Alba Zaluar definiu pertinentemente como ethos guerreiro, consubstanciado na adoção de uma identidade de “guerreiro” do traficante da periferia (o que é traduzido igualmente na identidade do “soldado”, que MV Bill pontua nas suas músicas e é belamente retratado em Cabeça de Porco). Entre as características dessa cultura está a ideia de hipermasculinidade, exibição de símbolos fálicos (arma, poder) e “poligamia” com as mulheres do local e as “patricinhas” que vão atrás de “homens de verdade” nos morros. Esse ethos se forja sobretudo a partir do eixo do “respeito” (uma espécie de código de honra rigoríssimo e sujeito às respostas mais violentas possíveis) e das relações com a polícia, geralmente baseada em operações militares de extermínio como as que vemos retratadas em Tropa de Elite e a recente invasão do Complexo do Alemão. Na guerra (em especial na War on Drugs – assim, em inglês), é preciso de guerreiros. (É interessante observar, no entanto, como a dinâmica humilhação/respeito está presente igualmente no Norte, bastando ver o retrato traçado por Jock Young acerca do tema em A Sociedade Excludente e a própria cultura do hip hop norte-americano atual).

Portanto, esse ethos foi forjado em um contexto muito específico e de forma reativa. Evitemos o simplismo. Inclusive o simplismo de não perceber a ambivalência de que, ao mesmo tempo que a posição de mulher de bandido traduz uma condição relativamente insuficiente para a mulher, há uma cultura interessante de liberação sexual nesses locais em relação aos recalques da burguesia. Nenhuma solução simplista ou paternalista parece ser possível. Não é simplesmente uma “cultura de paz” que irá resolver essa quantidade de contradições e preconceitos em ricochete que se dão dentro desses contextos. Somente a justiça como força irruptiva pode cancelar essas divisões, abrindo a possibilidade de algo novo. Ademais, e dadas as condições estruturais que possibilitem, a transformação cultural do machismo da periferia precisa, necessariamente, vir da própria periferia, a partir das lutas micropolíticas tais como a Tati Quebra-Barraco ou outras forças emergentes que contestem o poder falocêntrico dos traficantes sobre esses espaços. O como isso será feito e o que será posto no lugar é algo que só o porvir dirá, sendo que, para não repetirmos o gesto de violência que repudiamos, as mulheres deverão ser as protagonistas dessa transformação.

ROCK E REVOLUÇÕES ÁRABES

Lendo o ótimo dossiê da Revista Cult acerca dos países árabes e suas revoluções constatei em dois artigos a influência do rock (em especial do heavy metal) e do hip hop como elementos que impulsionaram a juventude dos países a lutar pela democracia e pela liberdade. Não muito diferente, aliás, do que foi o rock como força impulsionara dos movimentos do 1968 – heterogêneos entre si – mas que constituíram o último suspiro do político no século XX.

Com isso, creio que lamentáveis livros como o de Finkielkraut, no qual ataca o rock como decadência da cultura, vão parar no lugar onde deveriam estar: na prateleira dos velhos nostálgicos e rabugentos. O velho nostálgico é dono daquele cansativo mantra: “no meu tempo era melhor, agora está tudo decaído, perdido”; o velho rabugento é aquele que reclama de tudo indiscriminadamente, veiculando uma espécie de pessimismo difuso que não raro se encontra com o preconceito. Livros como o de Finkielkraut e toda turma que vê fenômenos contemporâneos como o rock e a tecnologia de ponta como sintomas de decadência terão que ser revistos imediatamente a partir das revoluções árabes, embaladas pelo rock e mediadas pelo twitter e pelo facebook.

É evidente que isso não significa, de outra mão, um otimismo tolo com relação a esses fenômenos. Como em tudo, a política está também presente tanto no rock quanto nas novas tecnologias. O rock é atravessado pela disputa entre o movimento de consagração (a separação que estetiza a política, retirando dela seu sentido vital) e o movimento de profanação (o novo uso que politiza a arte, transformando-a em forma-de-vida). De um lado, estão os defensores do cânone e os produtos da indústria do espetáculo (estes últimos provavelmente os alvos de Finkielkraut, que contudo banalizou demais as coisas até um ponto em que a indiferenciação se torna violenta e preconceituosa), que estetizam a dimensão vital do rock, transformando-o em artigo formulaico e repetitivo, ou simplesmente uma forma vazia que se vende ao lado das balas e dos chocolates. De outro, estão aqueles que buscam com o rock transtornar a ordem, invertendo o sagrado na dimensão do maldito profanado, isto é, de um maldito que não quer ser o oposto do sagrado, mas apenas desestabilizá-lo, tirá-lo da esfera separada, desfazer seu arranjo violento. Esse maldito profanado – que é a própria essência de algum heavy metal – por óbvio teve o efeito de desfazer a concentração das energias políticas do Oriente Médio na religião (que por sua vez permitiu a ascensão dos fundamentalismos) – permitindo à juventude reivindicar novos arranjos políticos. O hip hop, por outro lado, seguindo sua tradição, foi o próprio grito das vozes silenciadas, fazendo ecoar a alteridade que era sufocada pelas polícias diversas que organizavam esses países.

Espero que, diante das revoluções árabes, as críticas de certa esquerda rabugenta possam ser capazes de perceber as sutilezas desse processo, substituindo seus preconceitos de pura rabugice por uma parceira produtiva com todas as forças subversivas que possam contestar as forças que mantém a injustiça nas nossas sociedades.

POLÍTICA DO SÉCULO XXI

É muito cedo para traçarmos qualquer diagnóstico mais conclusivo sobre o que virá no século em que estamos. Mas os primeiros anos do século XXI parecem dar sinais.

O primeiro ponto é o esgotamento da narrativa moderna do progresso e da formalização liberal da esfera política. Por mais denegações que existam – especialmente aquelas que estabelecem teorizações abstratas sobre a política como se esta pudesse ser recriada em condições ideiais, despida de história, violência e memória – o avanço da filosofia e das ciências do século XX apontam para o esgotamento da ideia de um indivíduo autocentrado na consciência que delibera contratualmente com os demais acerca dos limites da sua liberdade que, no fundo, confunde-se com a propriedade. Todas as áreas – da história à biologia, da antropologia à psicanálise – desconfirmam essa tese. A imagem sobrevive agonizante no direito, na filosofia política e na teologia. Mas o contraste – em especial o contraste cultural e material – que a tecnologia moderna torna mais visível (e também mais invisível) mostra que mesmo o discurso dos direitos humanos (com toda lógica que lhe é implícita, em especial a do cosmopolitismo) já não soa tão convincente quanto no final da Segunda Guerra Mundial.

A teologia do mercado do final do século XX, apelidada por aqui de “neoliberalismo”, igualmente agoniza ao lado do seu rival, o “Welfare State” e todo seu caminhão burocrático. São possibilidades que implodiram a si próprias: o Welfare pela elevação da qualidade de vida que provocou revoluções culturais e insustentabilidade financeira; a teologia de mercado pela quebradeira dos últimos anos, apesar de ainda existirem “lacaios da burguesia” (expressão de Adorno que mereceria uma retomada) capazes de justificar tudo e sempre, eufemisticamente chamando de “crise” aquilo que é um evidente efeito da própria estrutura que supostamente estaria abalada.

Por fim, o “projeto Huntington” de transformar o século XXI em um “Choque de Civilizações” ruiu com as revoluções árabes desse ano, cujo teor escancarou que a representação do árabe (e em especial do islâmico) como “outro-barbáro” é uma forma de escamotear a dominação material e cultural que perdura por séculos do Ocidente em relação àquelas regiões. (Estratégia, diga-se de passagem, nada inédita.) O “Choque de Civilizações” ficou apenas para os dois pólos fanáticos, ou seja, os fundamentalistas cristãos dos EUA e os fundamentalistas islâmicos da Al-Qaeda.

O que temos, então? Acredito que vivemos uma reconfiguração da polaridade esquerda/direita. Uma das formas de visualizar as perspectivas históricas de forma mais errônea é acreditar que a história é uma linha do tempo, isto é, aquilo que está atrás foi necessariamente apagado pelo que vem na frente. Na realidade, os tempos continuam existindo, o que significa que  esquerda e direita tradicionais continuam lutando nos seus mesmos termos (nos termos que, digamos, a Veja coloca a questão). Mas, ao mesmo tempo, testemunhamos a emergência de novos campos políticos, dos quais eu destacaria pelo menos três:

– O “Projeto da Direita” (falta um nome melhor), cujas estratégias são simplesmente colocar em ação todo aparato possível do estado de exceção a fim de conter os marginalizados espalhados pelo mundo, sobretudo a partir das políticas de imigração e da política criminal de encarceramento massivo, ao mesmo tempo em que garante àqueles que estão acima da linha da cidadania todas as benesses da sociedade de consumo (mantendo ambiguamente em vigor os velhos conservadorismos morais ao lado da pura performance);

– O “Projeto Chinês” (traduzido mundialmente como BRIC)  – que consiste na utilização da sociedade do consumo como mecanismo inclusivo dos pobres e mantém plenamente vigente a matriz exploratório-industrialista da Modernidade como forma de reduzir a desigualdade social. Esse projeto é também tecnocrático, à medida que propõe uma despolitização geral como forma de evitar as polêmicas da Guerra Fria (da qual é herdeiro) e busca promover a transformação social a partir das próprias armas que a obstaculizam;

– O “Projeto (mas aqui “projeto” não cai bem) da Sustentabilidade”, – que engloba  multiplicidade de perspectivas que se encontram no ponto em comum de propor um novo modelo de relação com o mundo, abrangendo tanto a exploração ambiental, a relação com outros viventes, a reconfiguração do espaço urbano, rediscussão da propriedade (em especial da propriedade intelectual), quesitonamento radical do utilitarismo naturalizado a partir da dádiva e a recuperação das energias revolucionárias não-violentas que se voltam contra a dominação sangrenta exercida hoje em dia (ainda que por vezes travestida – e a palavra é aqui importante – na forma da democracia liberal e do mito do contrato social).

Todos esses pólos são condensações de uma complexidade imensa. Esses são apenas alguns elementos que eu vislumbro na política do século XXI que procuram traçar um mapa do nosso cenário.

A FALÁCIA CULTURALISTA

Samuel Huntington ficou conhecido como autor de Clash of Civilizations, o “Choque de Civilizações”. Autor identificado com os neocons norte-americanos e bastante útil como fonte na Guerra ao Terror promovida por George W. Bush, já deveria ter caído na irrelevância, não fosse certa insistência de alguns em etiquetar como “pós-moderno relativista” tudo aquilo que se opõe ao violento etnocentrismo ocidental.

Escrevo hoje (28-01) enquanto as manifestações no Egito, que seguiram a Tunísia, estão em pleno andamento. Não sei que consequências advirão. Não sei se ao ditador atual será sucessor um teocrata, tal como ocorreu no Irã. Mas não posso deixar de me posicionar sobre o assunto, pois prefiro errar, como Foucault errou, do que me proteger na casca da neutralidade que, no fundo, é a mesma da irrelevância.

O que me interessa nesse momento é desmascarar Huntington e sua tese como aquilo que o antigo marxismo chamava a mais crassa “ideologia”. Por trás de um sistema de violenta dominação do Ocidente sobre o Oriente, em especial pelos poços de petróleo e os numerosos colonialismos ao longo dos últimos séculos, a tese de que o conflito com o mundo islâmico (totalmente heterogêneo entre si) é um conflito eminentemente cultural entre o Ocidente-iluminista, defensor da democracia dos direitos humanos, e o Oriente-fundamentalista, defensor do islamismo fanático e do obscurantismo, é simplesmente uma farsa. Como podemos ver com a Tunísia e o Egito, essas populações não têm ressentimento do Ocidente apenas por divergências culturais (a religião adotada, o vestuário, os símbolos, a alimentação etc.), mas por enxergar nele o apoio a ditaduras cruéis, opressão, miséria e fome. É impossível não ligar a emergência do fundamentalismo como uma resposta (como disse certa vez Habermas) “anarco-fascista”, um grito violento de vozes silenciadas, a esse status quo mundial (do qual, a despeito da grandeza da tradição semítica, Israel faz parte enquanto Estado protagonista ). Tratar isso como se fosse um conflito estético-cultural é da profundidade de um pires, se não for simplesmente má-fé.

Não sei se haverá democracia liberal na Tunísia e no Egito depois da derrubada dos déspotas. A democracia liberal, ao contrário do que pensa uma parte da filosofia política contemporânea, é um fenômeno cultural vinculado a certo ethos em que conceitos como indivíduo, contrato, troca, direito e humano são estruturantes. Não é a única opção. A própria oposição laico/religioso merece ser posta em outros termos. (Para quem quiser mais detalhes da minha posição, pode consultar artigo sobre o tema “fundamentalismo religioso” na parte dos artigos acadêmicos.)

O certo, porém, é que a irresignação e as fontes com que se espalhou (twitter, facebook etc.) são sinal de que os tempos estão mudando e talvez haja muitos escrúpulos em percebê-lo. A influência da Wikileaks, fonte de uma cyberguerra que apenas começou, mas onde estão em jogo os principais fundamentos do status quo, representa que tais especulações não são apenas otimismo de esquerda. O fato de Julian Assange ser etiquetado como “terrorista” por mostrar a verdade (que curioso, a verdade é terror!) é, ao mesmo tempo, um mau e bom sinal. Mau, porque significa um estado de exceção em plena ativação, pronto a funcionar com todas as armas criadas pela Guerra ao Terror de Bush. Bom, por outro lado, porque significa que o nervo central dos poderes mundiais – em todas as esferas, da econômica à moral – ainda podem ser tocados e despedaçados. Recolher as vozes descontentes nesse processo não significa adotar uma idílica política do “bom selvagem”, passando a ser aliado de fundamentalistas cujas ideias são diametralmente opostas a tudo que uma esquerda gostaria de contar, mas encontrar meios e formas criativas de focalizar a energia subversiva para a vida, recuperando o espaço que antigamente se chamava de política.

 

PS: Depois de escrever esse texto e ao chegar das primeiras férias, resolvi antecipar sua publicação, uma vez que encontrei textos de Vladimir Safatle (aqui) e Slavoj Zizek (aqui) no mesmo sentido.