O decepcionante Governo Obama parece refém de uma acusação interminável e que dará a vitória sempre aos (neo)conservadores: trata-se de um comunista. Obama é escravo da imputação de ser um defensor do “big government” e parece ter passado os últimos dois anos tentando afastar de si próprio esse terrível crime. Em nome da “unidade” da nação – algo ironicamente tão antimarxista – promove tentativas incessantes e inúteis de conciliação com os setores ultraconservadores, achando inclusive que sua magnífica retórica será capaz de convencer fundamentalistas misóginos, racistas e egoístas de algo (em outros termos: como se eles estivessem dispostos a ser convencidos).
Por que a vitória será sempre dos neocons e teólogos da mão invisível? Ora, basicamente porque em alguma medida eles têm razão. Foi o comunismo e toda crítica de esquerda do século XIX que provocou, ao lado do movimento operário propriamente dito, mudanças em relação à crueldade competitiva instituída pelo liberalismo puro. Se mais tarde tudo isso se combinou em social-democracia (nos EUA de hoje, liberalismo), tentando aparar as arestas e conciliar um regime de democracia liberal com a intervenção do Estado como um “seguro social” capaz de minimizar os efeitos perversos do livre-mercado, isso não exclui a influência – inclusive pela pressão do bloco soviético durante a Guerra Fria – do comunismo sobre as sociedades do Atlântico Norte. Mas por que Obama não pode simplesmente dizer isso? Por que Obama não pode simplesmente dizer: sim, acho que podemos sim usar algumas boas ideias de outros lugares e nem por isso estaremos transformando nosso regime político?
Aparentemente, a razão é uma só: porque em alguma medida o macartismo venceu nos EUA. Sua vitória não pode ser um feito pessoal do Senador Joseph McCarthy, mas o estabelecimento de um dogma crucial que serve de pano de fundo para todas as discussões políticas: o “governo grande” é uma acusação em si mesma, independente do que está sendo discutido, e tudo aquilo que conteste o capitalismo deve ser expurgado sem uma análise acerca da validade do que está sendo dito. O macartismo venceu no sentido de que impôs uma regra de conversação não-dita, uma metarregra capaz de transtornar o debate a ponto de desviá-lo sempre para a acusação e a justificativa, acuando o defensor de uma ideia nova. Todo debate em torno de algum tema importante pode se transformar rapidamente de uma troca de ideias e argumentos em um tribunal inquisitório em que um dos debatedores deve explicar porque não é comunista, deixando de lado o tema debatido. Quer dizer: mesmo que, no fim das contas, o indivíduo Chaplin possa ter vencido McCarthy, Chaplin foi definitivamente expulso da “América”.
A metarregra macartista conduz todo debate midiático com o seguinte enunciado: o comunismo significa a destruição do “american way of life”; portanto, tudo aquilo que lembrar comunismo deve ser expurgado do debate sem julgamento do mérito (para usar uma expressão jurídico-processual que cabe bem a esses tribunais inquisitoriais). Sabendo-se que os EUA são aquele país em que o sistema cultural, político e econômico se acoplaram com maior perfeição – como Weber e Tocqueville nos ensinaram – isso significa, em outros termos, que não há esquerda nos EUA, pois ninguém pode propor a transformação desse “ethos” (ou, dito ao contrário, todos são conservadores).
É claro que no mundo acadêmico e artístico, por exemplo, ainda existe uma esquerda radical que não se curva aos dogmas macartistas. Gente como Judith Butler ou Cornel West, de um lado, e variados que passam por Eddie Vedder, os Flaming Lips até Alan Parker, Sam Mendes e tantos outros. Porém atualmente isso tem sido insuficiente para enfrentá-lo. Além disso, sempre haverá quem ache que é possível fundar uma sociedade igualitária apagando toda história e colocando pessoas com véu na cabeça e sem sentir seu corpo para decidir sobre tudo. Trata-se de filosofia séria, afinal de contas.
(PS: Outro dia escrevo sobre o corresponde brasileiro ao macartismo: o udenismo/lacerdismo que também foi vitorioso no Brasil.)