Filosofia analítica e filosofia… continental (?)… oi?

Uma das polêmicas mais estéreis do campo filosófico é a famosa polêmica entre filosofia analítica e a filosofia dita continental. Vou me poupar de defini-las, já que se você se interessou em ler o post provavelmente já sabe o que está em jogo.

Primeiro, nada estranho que estudantes se interessem por filosofia analítica. Os indivíduos podem estar fascinados pela lógica formal e em resolver seus problemas, pensando nas suas aplicações por exemplo na programação ou questões de inteligência artificial. Tampouco estranho que outros estudantes prefiram usar a linguagem cartesiana (tida como a “clara”) para se expressar e formular problemas, aproximando-se de filósofos e problemas filosóficos que se põem a partir desse referencial (por exemplo, o problema do dualismo mente-corpo). Absolutamente nada estranho aqui, é uma opção totalmente válida e nem vou entrar em qualquer tipo de análise do estilo “sociologia da ciência” para explicar. Digamos apenas que é a mesma opção de quem prefere se dedicar a Platão ou Spinoza.

No entanto, o problema de toda oposição não é o polo que a define, mas o outro. Quando pensamos em negro e branco, o polo que importa não é o branco, tido como transparente e universal, mas aquele que foi construído para ser marginalizado (nem peguei dicotomias mais polêmicas, apenas uma que se baseia claramente em um conceito socialmente construído: a raça). É para definir o negro que existe a oposição, e não apenas o definir: é para o subordinar que ela existe.

Dito isso, passamos ao seguinte ponto: o que importa na dicotomia entre filosofia analítica e filosofia continental não é o primeiro polo, mas o segundo. O que é, afinal, filosofia continental? A resposta é: tudo que não é analítico. Sendo assim, criou-se um rótulo para jogar no mesmo saco uma série de diferentes correntes e tradições da filosofia, tomando-as como um corpo mais ou menos único que se opõe à filosofia analítica. Esse rótulo unificador, portanto, espreme uma série de posições completamente diferentes em um único selo, como se fosse possível reduzir dois milênios de filosofia à ideia de “continental”. Se pensarmos, por exemplo, na diferença significativa entre as tradições francesa, alemã e italiana, fica risível reduzir tudo ao rótulo de “continental”. Elas são tão diferentes entre si quanto são diferentes da filosofia analítica. Por exemplo, a filosofia alemã é majoritariamente kantiana em alguma escala, enquanto a filosofia francesa em várias correntes pode simplesmente ignorar o pensamento de Kant (é o caso da tradição que vai de Bergson e Bachelard até hoje Serres e Latour). Vejam, até os filósofos da tradição analítica quando resolvem falar disso “adequadamente” se atrapalham. Em um ótimo livro, por exemplo, Lee Braver qualifica a polêmica entre analíticos e continentais a partir do duelo entre realismo e anti-realismo. Além da classificação ser problemática, já que bem olhado o anti-realismo é bem mais pop entre os analíticos que entre os ditos continentais (Derrida, por exemplo, que para Braver é a culminância do anti-realismo, está mais próximo do realismo que do anti), filósofos que os próprios analíticos têm como manifestação da continentalidade, como é o caso de Deleuze, ficam sem lugar. (Deleuze, para quem não sabe, era um metafísico realista.)

O que está em jogo então nessa dicotomia que – como gostam de dizer alguns analíticos – é “obviamente falsa”? A redução da filosofia a duas correntes, simplificando tudo que não é analítico como “continental”, na verdade é uma manobra que permite distinguir entre a filosofia e a não-filosofia. Ao reduzir estupidamente correntes completamente diferentes a um rótulo único, muitas vezes o analítico está tentando simplesmente dizer que existe uma forma legítima e uma ilegítima de filosofar. Muitas vezes essa forma vem definida pelo estilo: filosofar é “argumentar claramente”, o que significa utilizar linguagem cartesiana para expor problemas. Mas o cartesianismo não é apenas um paradigma filosófico que os ditos “continentais” muitas vezes põem em disputa? A relação com a linguagem, no caso de filósofos como Derrida, não é totalmente diferente que por exemplo um Brandom? Nem vou entrar nesse mérito que, em todo caso, seria possível. Mas só um estilo é válido na filosofia? 

Existe ainda uma área mais “benevolente”, digamos assim, que considera que a filosofia continental é simplesmente um exercício de “história da filosofia”. Assim, a filosofia é dividida entre aquela que trata de história e aquela que trata dos problemas. Uma forma sutil de dizer que existem os filósofos atuais e os antiquários. Não nego que muitas vezes existem estudantes embriagados com um filósofo que não ultrapassam a dimensão simples da história da filosofia, tornando todo debate oco, mas essa corrente sabe que a filosofia “continental” tem outra forma de lidar com a história e, de modo mais geral, com o tempo? Ela conhece as problematizações que foram se acumulando em Hegel, Marx, Heidegger e Foucault acerca das relações entre pensamento e temporalidade? A resposta é: geralmente não, não sabe.

Qual é o ponto, então? O ponto é que não existe filosofia analítica e filosofia continental, mas simplesmente filosofia. Essa dicotomia é inválida para todos os efeitos porque foi mal construida. Ela é um péssimo instrumento – surpresa! – analítico para classificar o campo. Uma ferramenta conceitual equivocada que joga o “resto” não-analítico em um saco só. Mas, se você observar o campo filosófico, vai ver que analíticos, hegelianos, kantianos, deleuzianos, derridianos etc ocupam posições bem distribuídas. Em outros termos, o que existe é o campo da filosofia e a filosofia analítica é um entre muitos, não um dos polos que divide esse campo em dois. O que surpreende quando dizemos – como certa vez disse meu amigo Charles Borges – do sucesso da filosofia analítica não é tanto pelo fato de que os problemas que ela lança são inválidos ou desprezíveis, mas que os estudantes estão importando essa dicotomia ftotalmente errada. E pior: estudantes que, ao contrário dos colegas anglo-saxônicos, tiveram geralmente acesso à “filosofia continental”. Eles sabem que o professor que estuda Levinas é completamente diferente do que estuda Spinoza, mas fingem que não existe diferença. Por isso, agora vou para a parte mais dura do texto.

Por que uma dicotomia tão forçada e obviamente falsa vingou no mundo anglo-saxônico e foi exportada para outros países? A resposta é complicada. De modo geral, no entanto, dá para dizer que a atitude dos filósofos que procuram policiar a filosofia, dividindo entre a legítima e a ilegítima (mas sem entender quase nada da última), é uma atitude de censura. Assim, de certo modo o que eles querem é fazer o que todo censor sempre pensa estar fazendo em nome do Bem: “proteger a juventude das más influências”. Não por acaso o fundador da filosofia enquanto disciplina foi um adepto da censura, como Alexandre Nodari mostrou, entre muitas outras coisas, na sua tese sobre o assunto. Um paradoxo, já que Platão funda a filosofia com a censura à sofística e à poesia em nome da proteção da juventude, e seu exemplo de filósofo é justamente o Sócrates que foi acusado de corruptor da juventude. Em outros termos, ser acusado de corruptor da juventude, como várias vezes os filósofos analíticos “durões” acusam Derrida e Foucault, é um tremendo elogio, de Sócrates a Camila Jourdan.

Assim, na imagem bisonha da cabeça dos “durões”, os inúmeros congressos, seminários, debates, artigos e teses escritos em torno de Foucault, Deleuze e Latour são pura besteira. São adolescentes enfeitiçados por “má poesia” que ficam discutindo coisas sem sentido. Falsos doutores, impostores que seduzem a inocente juventude para essas teorias que não dizem nada sobre nada, pura enrolação sem nenhum sentido que a desvia da verdadeira filosofia. Pobres adolescentes acéfalos e mestres mal-intencionados. Cruel lavagem cerebral. Convenhamos que essa descrição é, para dizer o mínimo, very unreasonable, como gostam de afirmar os anglo-saxônicos. O mínimo que se poderia conceder – considerando o “razoável” – é que tantas pessoas mobilizadas em torno desses pensadores deve significar que eles dizem coisas com sentido. Apenas com razoabilidade chega-se nisso. 

O que está em jogo então é simplesmente a hegemonia de um paradigma filosófico imposto porque está atrelado ao núcleos de saber que correspondem às posições de poder na sociedade. É o momento que o analítico me pega no contrapé e diz: “te peguei no flagra, foucaultiano, você está dizendo que a verdade é apenas um efeito do poder!”. Não, não estou dizendo isso (e nem Foucault afirmou). Estou dizendo que algo tão obviamente falso quanto a existência de algo chamado “filosofia continental” somente pode ser aceito e chancelado se é enunciado por alguém bastante poderoso. Não estou dizendo que a filosofia analítica seja imposta pelo poder, mas que a descrição da filosofia analítica em torno do seu polo rival sim. Algo tão porcamente descrito só pode “colar” se vem do polo dominante. 

Vamos partir do seguinte exemplo: como brasileiro, penso que a “verdadeira filosofia” é a filosofia antropofágica. A metafísica ocidental, na qual se baseiam as tradições alemã, francesa e anglo-saxônica, por exemplo, é uma simplesmente cristianização do platonismo. Assim, divido o campo entre filosofia antropofágica, de raiz brasileira, e filosofia cristã, de raiz europeia e também importada pelos EUA. A pergunta é: quem vai dar bola para isso? Quase ninguém. Por quê? Basicamente porque a minha enunciação vinda de um polo geopolítico marginal é fraca para dividir o campo. Quando um analítico norte-americano, ao contrário, faz uma distinção absurda em que qualifica como “continental” tudo que não pertence ao seu campo e cola um monte de rótulos abusivos (“subjetivismo”, “relativismo”, “nonsense” etc.), todo mundo baixa a cabeça e acha que ele está dizendo coisas profundas, mesmo que demonstre um completo desconhecimento do que está falando. Em outros termos, como disse o Idelber Avelar no seu “The letter of violence”, dizer que você está falando inglês, mas poderia estar falando qualquer língua é uma piada de mau gosto. Não é “por acaso” que nos vemos falando inglês em eventos no Brasil, na Alemanha, na China ou na Tailândia, e o “nativo” do inglês, quando enuncia a coisa no seu idioma, não está em posição neutra diante de uma miríade de diferentes línguas que poderiam ser usadas. Aliás, a própria ignorância provinciana dos norte-americanos em torno de outras línguas, citando apenas livros em inglês, é sintoma disso. Se você faz isso no Brasil, é criticado por não ser na língua original. Nos EUA, tudo bem. 

Um último exemplo e concluo: Simon Blackburn, que é um importante filósofo do campo analítico, certa vez deu entrevista sobre a contribuição de Derrida para a filosofia. No meio da entrevista, Blackburn diz “meus amigos derridianos dizem que Derrida escreve isso e não escreve aquilo”. Pera aí: é impressão minha ou você está dando uma entrevista sobre um filósofo que NÃO leu? Não seria o mínimo de “honestidade intelectual” você simplesmente se abster de opinar sobre o que desconhece totalmente? Blackburn chega a julgar a obra de Derrida sem ao menos tê-la lido. Você vai me dizer que isso não tem nada a ver com poder? 

Em síntese, estou propondo que simplesmente acabemos com a divisão dessa forma dual. Para começar, vamos rachar os analíticos não apenas, como eles próprios se descrevem, entre os da lógica formal e os da linguagem ordinária, mas entre os analíticos totalitários e os pluralistas. Os totalitários são aqueles com vocação censória que, na linha de Ayer e cia., julgam as coisas sem entender, falam sobre o que nunca leram e acham que seu paradigma filosófico é único legítimo. Os analíticos pluralistas, ao contrário, são aqueles que reconhecem a multiplicidade de abordagens filosóficas, ainda que prefiram o tipo de indagação analítica. Caso hoje, por exemplo, de Brandom, Brassier, Harman e outros. O que não dá para aguentar mais são longas digressões sobre o que não existe. Para começar, honestidade intelectual no mínimo.           

A DOR NO LUGAR DA CERTEZA

Muito se discute sobre a polêmica afirmação de Emmanuel Levinas de que “a ética é a filosofia primeira”. Respondendo ao seu professor Heidegger, que fez questão de assenhorear a ontologia como fundamental, Levinas, testemunha das câmaras de gás e da anódina filosofia que delirava nas suas torres de marfim lógicas ou especulativas enquanto o Real acontecia de forma dilacerante (ou ainda pior: legitimava tudo isso), posiciona a ética como fundamento. Diante disso, pretendia romper com uma longa tradição de origem grega que comanda a filosofia desde o momento em que ela recebeu esse nome.

Muita incompreensão gira em torno do tema. A primeira e mais comum é analisar a questão à luz daquilo que ela visa exatamente a desbancar, isto é, a primazia do teórico-especulativo sobre o prático-concreto. Assim, se deveria provar ontologicamente que a ética vem primeiro. Evidente que essa confusão é resultado de um duplo equívoco: 1) afirmar que a ética vem primeiro não significa dizer que a ética é ontologicamente primeira, mas que há uma primazia (no sentido valorativo e em todas as consequências que isso gera) da dimensão do cuidado sobre a dimensão intelectiva, sem a qual o próprio intelecto inexistiria (no sentido básico de ética que Levinas dá ao termo); 2) a ontologia não é a realidade, mas pensamento do real, e realidade e pensamento não se confundem (aqui a centralidade do conceito de alteridade aparece). Jamais, portanto, será possível afirmar que a ética é produto do pensamento, antes o contrário: sem ética o pensamento inexistiria, não existiriam as condições onto e filogenéticas para seu surgimento.

Em todo caso, no seu mínimo denominador comum o pensamento de Levinas repete um gesto que – ele próprio admite – não é de todo inédito na história da filosofia. Ele cita, por exemplo, Platão, quando colocou o Bem acima do Ser. Mas poderíamos citar outros exemplos, em especial Marx, quando põe a transformação da sociedade como tarefa da filosofia nas Teses contra Feuerbach. Mais recentemente, contemporâneos de Levinas como Adorno, Benjamin, Horkheimer e Marcuse parecem comungar do mesmo pressuposto para compreensão do seu real intento. E – iria mais longe – mesmo filósofos distintos dele como Deleuze, Foucault e quiçá Nietzsche parecem caminhar na mesma estrada.

Não importa. O que importa, a rigor, é a substituição que a filosofia do século XX – atormentada sobretudo por Auschwitz – realiza na prática. Essa substituição consiste no primado da certeza como fundamento da verdade para que esse local seja ocupado pela dor. É a dor que ocupa o espaço fundamental de ser o próprio parâmetro do real, parâmetro que se deixa dizer na frase de que “verdadeiros são todos os pensamentos que negam a injustiça”. A dor, enquanto dilaceramento da consciência pela realidade que se nega à redução, é o ponto de arquimedes no qual se apóiam grande parte dos filósofos cuja primazia na obra é da ética, e não da ontologia. Que a ética não seja o oposto da ontologia e que inclusive permita uma ontologia é outra questão. A questão é aqui, eminentemente, de fundamento.

É com o sofrimento – aquilo que não pode ser simbolizado, assimilado, que é traumático na medida em que é inassimilável, irrepresentável – a dor profunda que dilacera o outro, o sinal da realidade do real, da sua concretude e encarnação, que se debatem os grande filósofos do século XX. Dor essa que não atravessa para além da nossa vontade, que explode a nossa consciência, que vem de um lugar estranho, desconhecido, que chega sem ser convidada, estrangeira, inóspita, cortante. Não é de outra coisa, a meu ver, que vem o sentido da expressão “ética como filosofia primeira”.

 

A FALÁCIA CULTURALISTA

Samuel Huntington ficou conhecido como autor de Clash of Civilizations, o “Choque de Civilizações”. Autor identificado com os neocons norte-americanos e bastante útil como fonte na Guerra ao Terror promovida por George W. Bush, já deveria ter caído na irrelevância, não fosse certa insistência de alguns em etiquetar como “pós-moderno relativista” tudo aquilo que se opõe ao violento etnocentrismo ocidental.

Escrevo hoje (28-01) enquanto as manifestações no Egito, que seguiram a Tunísia, estão em pleno andamento. Não sei que consequências advirão. Não sei se ao ditador atual será sucessor um teocrata, tal como ocorreu no Irã. Mas não posso deixar de me posicionar sobre o assunto, pois prefiro errar, como Foucault errou, do que me proteger na casca da neutralidade que, no fundo, é a mesma da irrelevância.

O que me interessa nesse momento é desmascarar Huntington e sua tese como aquilo que o antigo marxismo chamava a mais crassa “ideologia”. Por trás de um sistema de violenta dominação do Ocidente sobre o Oriente, em especial pelos poços de petróleo e os numerosos colonialismos ao longo dos últimos séculos, a tese de que o conflito com o mundo islâmico (totalmente heterogêneo entre si) é um conflito eminentemente cultural entre o Ocidente-iluminista, defensor da democracia dos direitos humanos, e o Oriente-fundamentalista, defensor do islamismo fanático e do obscurantismo, é simplesmente uma farsa. Como podemos ver com a Tunísia e o Egito, essas populações não têm ressentimento do Ocidente apenas por divergências culturais (a religião adotada, o vestuário, os símbolos, a alimentação etc.), mas por enxergar nele o apoio a ditaduras cruéis, opressão, miséria e fome. É impossível não ligar a emergência do fundamentalismo como uma resposta (como disse certa vez Habermas) “anarco-fascista”, um grito violento de vozes silenciadas, a esse status quo mundial (do qual, a despeito da grandeza da tradição semítica, Israel faz parte enquanto Estado protagonista ). Tratar isso como se fosse um conflito estético-cultural é da profundidade de um pires, se não for simplesmente má-fé.

Não sei se haverá democracia liberal na Tunísia e no Egito depois da derrubada dos déspotas. A democracia liberal, ao contrário do que pensa uma parte da filosofia política contemporânea, é um fenômeno cultural vinculado a certo ethos em que conceitos como indivíduo, contrato, troca, direito e humano são estruturantes. Não é a única opção. A própria oposição laico/religioso merece ser posta em outros termos. (Para quem quiser mais detalhes da minha posição, pode consultar artigo sobre o tema “fundamentalismo religioso” na parte dos artigos acadêmicos.)

O certo, porém, é que a irresignação e as fontes com que se espalhou (twitter, facebook etc.) são sinal de que os tempos estão mudando e talvez haja muitos escrúpulos em percebê-lo. A influência da Wikileaks, fonte de uma cyberguerra que apenas começou, mas onde estão em jogo os principais fundamentos do status quo, representa que tais especulações não são apenas otimismo de esquerda. O fato de Julian Assange ser etiquetado como “terrorista” por mostrar a verdade (que curioso, a verdade é terror!) é, ao mesmo tempo, um mau e bom sinal. Mau, porque significa um estado de exceção em plena ativação, pronto a funcionar com todas as armas criadas pela Guerra ao Terror de Bush. Bom, por outro lado, porque significa que o nervo central dos poderes mundiais – em todas as esferas, da econômica à moral – ainda podem ser tocados e despedaçados. Recolher as vozes descontentes nesse processo não significa adotar uma idílica política do “bom selvagem”, passando a ser aliado de fundamentalistas cujas ideias são diametralmente opostas a tudo que uma esquerda gostaria de contar, mas encontrar meios e formas criativas de focalizar a energia subversiva para a vida, recuperando o espaço que antigamente se chamava de política.

 

PS: Depois de escrever esse texto e ao chegar das primeiras férias, resolvi antecipar sua publicação, uma vez que encontrei textos de Vladimir Safatle (aqui) e Slavoj Zizek (aqui) no mesmo sentido.

EXPERIÊNCIA E AUTORIDADE

Não resta dúvida que vivemos na época do declínio de toda e qualquer autoridade. De certa forma, a cultura punk mergulhou tão profundamente no nosso imaginário social que, realmente, a juventude não reconhece mais autoridades quaisquer. As demandas desesperadas do neoconservadorismo que impregna os jornais cotidianos não passam de gritos desesperados por um tempo que passou, como, aliás, é típico dos “neos” (todo “neo” traz junto consigo uma crosta de decadência). Ora, o problema aqui não é a decadência da autoridade, mas de toda e qualquer autoridade.

A Modernidade – em especial a partir daquilo que denominamos Iluminismo – é a rejeição de toda e qualquer autoridade que não a razão. Isso é bom? Parece maravilhoso. De fato, se pensarmos na sombra que lhe antecedia do dogmatismo medieval e do direito divino dos reis, foi um avanço assombroso. O problema, dito em forma coloquial, é que o Iluminismo jogou fora o bebê junto com a água suja da bacia.

Se é absolutamente legítimo pretender que toda autoridade seja fundada na razão, certo, porém, é que existe um âmbito da experiência humana que não se reduz à racionalidade calculadora típica da Modernidade desde Descartes e Leibniz. Esse âmbito poderia ser chamado simplesmente de “vida”. Ao reduzir a filosofia à epistemologia (teoria do conhecimento), a Modernidade encurtou o âmbito da experiência humana, reduzindo tudo aquilo que não tinha legitimidade epistemológica à esfera puramente subjetiva e privada (sobre o tema, autores díspares como Gadamer e Adorno estão de pleno acordo, recomendo Verdade e Método e Minima Moralia). Com isso, plantou a semente para o individualismo monádico da contemporaneidade (muitas vezes perverso e narcisista, chegando ao limite em ações como queimar um índio, bater em uma prostituta, pichar um morador de rua, espancar um “playboy”, apenas para o gozo) e a impossibilidade de se reconhecer qualquer autoridade. O punk – com toda sua ambivalência (fugindo de descrições edificantes, é preciso dizer que o punk oscila do anarquismo ao neonazismo) – é uma expressão estético-cultural desse fenômeno.

Então, relegitimar a autoridade, como defendem os neoconservadores nas suas discussões infindáveis sobre a “falta de limites” na educação? Se estivéssemos simplesmente a ratificar essa posição, estaríamos ao lado do pior do pior do reacionário no Brasil (digamos, quase nível TFP). A questão é perceber que a autoridade, como diz Gadamer, não é simplesmente a que manda, mas a que sabe mais. A autoridade não deve ser o pujante, mas o sábio. A questão é, no horizonte da nossa sociedade de espetáculo e do consumo, ainda somos capazes de produzir sábios?

Como já foi dito, ao encurtar o campo da experiência para o âmbito estrito do conhecimento e retirar qualquer saber prático do campo de legitimidade filosófica, a tradição moderno-iluminista delegou ao âmbito subjetivo – da plena liberdade no âmbito privado e tolerância no âmbito público – essa esfera de saber. (Precisaríamos de muito mais linhas para mostrar o quanto essas ideias são falaciosas e simplesmente falsas.) Com isso, produziu um declínio nesse saber que hoje se traduz na incapacidade de os sujeitos mais velhos narrarem seu conhecer por simplesmente não terem qualquer conhecer. As conquistas da geração-68, ao serem capturadas pela sociedade do espetáculo, deixaram de lado a energia utópico-messiânica para ficar apenas com a parte mais frágil: a “juventude eterna”, essa que aparece em comerciais de tinta para cabelos brancos.

O resultado disso é um conjunto de velhos ridículos, isto é, velhos que não reconhecem o valor da experiência vivida que tiveram (porque, às vezes, simplesmente não viveram, eram sonâmbulos morimbundos que apenas sobreviviam ao stress enquanto adquiriam bens de consumo) e têm como único objeto parecer jovens a partir de procedimentos cirúrgicos que apontam para o corpo como plataforma biopolítica da sociedade do espetáculo. Trata-se de uma gravíssima crise cultural, pois, pergunto, como poderiam os jovens reconhecer a autoridade (o saber mais) nesses velhos? Quando os pais querem ser iguais aos filhos, a própria noção de autoridade se implode, uma vez que só resta a figura do irmão, jamais a do pai. Como diz o amigo Luciano Mattuella em interessante artigo sobre o tema, sem a mediação de uma tradição que possa dialetizar, o sujeito contemporâneo vive em permanente desamparo.

A transformação de autoridade baseada no poder e na disciplina para a ausência total de autoridade (ou, se quisermos, da sociedade punitiva para a sociedade permissiva) levou ao modelo social em que vivemos, onde a perversidade parece ganhar ares de mal-estar similar ao que a neurose ocupava no século XIX e início do XX. Um pensamento que se preocupe em pensar a própria vida – como uma tradição filosófica jamais deixou de fazer – deve se encarregar da transformação de autoridade disciplinar para a autoridade da experiência, amparando o desorientado sujeito contemporâneo a partir do cuidado e da sabedoria.

ALTERIDADE(S)

Um dos maiores riscos da ética da alteridade desenvolvida pelo filósofo Emmanuel Levinas é cair numa embriaguez edificante, passando de uma das mais radicais propostas de reconsideração do mundo em que vivemos a uma anódina carta de boas intenções. Se qualquer coisa é alteridade, é sinal de que algo andou errado nessa história.

Não há como não perceber que a questão da alteridade tem que ser posta ao lado da dimensão do poder. Para os intérpretes fiéis, basta lembrar algumas passagens de Levinas, dentre as quais “o humano se mostra onde não há poder” ou mesmo seus comentários em torno de Marx, quando o entrevistador, na linha edificante, chama o marxismo de “filosofia da conquista”, ao que Levinas responde com “o marxismo convida a humanidade a reclamar o que é do meu dever dar-lhe“, também na menção bíblica que identifica o Outro “no órfão, na viúva e no estrangeiro” e mesmo da sua crítica à Totalidade (que, obviamente, é uma totalidade sustentada por alguns, e não uma ordem que caiu do céu). Um breve parêntesis para afirmar o que é a alteridade: justamente a “sobra” do conceito, ou seja, a irredutibilidade do real ao pensamento, a concretude no sentido mais forte possível, a indizibilidade daquilo que não pode ser dito sem mutilar e deformar o que existe. A alteridade é o que não se diz porque não há palavras para dizê-lo (e, ao mesmo tempo, é tudo que é dito), não tanto mistério, enigma (embora Levinas já a tenha assim definido), mas mais precisamente a realidade do real, a coisa bruta, nós.

Quanto a isso, não há dúvidas de que todos têm alteridade. Mesmo um ditador cruel, um carrasco, o mais perverso dos seres, todos têm alteridade; em todos há uma dobra irredutível ao conceito, algo que escapa à teorização, no mínimo no tempo (quer dizer: na possibilidade de se tornarem algo distinto do que são). Mas – nivelando a todos dessa forma – perde-se o essencial da ética da alteridade, tornando-a uma espécie de mensagem da tolerância universal e, com isso, do conformismo, da inação, do imobilismo. Se é verdade que todos têm alteridade, é também verdade que a alteridade grita exatamente na diferença. Não são os “vencedores” da história de Benjamin que representam mais propriamente o que Levinas quis tratar como Outro, mas os “vencidos”. Outro é precisamente o resto, aqueles que aguardam a redenção na História que sequer os reconhece como personagens.

Perceba-se que a neutralidade política é arrasadora para uma ética que quer justamente olhar para aqueles que, na sua diferença (muitas vezes a diferença da miséria, p.ex.), despertam indiferença. E – se todos somos responsáveis por tudo, como bem coloca Levinas lembrando Dostoievsky – aqueles que estão ao lado da Totalidade (a ordem injusta, a violência do instituído, o fascismo que nega a diferença etc.) não representam a alteridade. Representam “o Mesmo”, não “o Outro”. Essa diferença é central.

Não é à-toa, para citar um exemplo trivial, que pensar em locais antes frequentados pela diferença (mesmo que em forma de “tribos”) mais tarde colonizados pelo mainstream da noite, ou seja, pelos idênticos e idênticas personagens que ali estão apenas porque “é moda”, é uma experiência insuportável para aqueles que procuram sair da asfixia da Totalidade (da ordem dos locais do momento, dos pontos de exibicionismo, das sedes do espetáculo e da performance). Quando o mainstream da noite – mauricinhos e patricinhas, yuppies e petecas – invade o local, é sinal de que a vida (ou seja, a chance de uma experiência diferente, nova) é imediatamente amortecida pela serialização, uniformização, pela plataforma do Mesmo. Isso não significa dizer que neles(as) há uma essência do Mesmo, mas que eles(as) agem dessa forma, proliferando, alimentando, naturalizando o Mesmo. Não há qualquer resto de singularidade por ali. A demanda dessas tribos contra a banalização dos seus espaços  não é, portanto, necessariamente uma demanda conservadora por pureza (embora possa ser), mas uma revolta contra a colonização do Outro (as novas formas de vida) pelo Mesmo (a transformação em locais de consumo e espetáculo).

Por essa razão, é preciso ter cuidado em sempre afirmar que tudo é alteridade. Se é verdade que todos têm alteridade, é também verdade que nem todos agem no sentido de reconhecer a alteridade do Outro, e muitos trabalham para a respectiva destruição. Pensar a alteridade é pensar sempre um ponto de escape dessa Totalidade que o poder constitui. A alteridade não é outra coisa, por isso, que o Ingovernável, o lugar onde o poder foi desativado e a vida pode enfim viver a experiência.

CHRISTOPH TÜRCKE, “FILOSOFIA DO SONHO”

Recomendado pelo Prof. Hans-George Flickinger, esse interessantíssimo livro de Christoph Türcke foi o primeiro livro que devorei esse ano de 2011. Türcke enquadra-se na tradição da primeira geração da Escola de Frankfurt, sendo pleno de ressonâncias de Adorno, Horkheimer e Benjamin. No entanto, o que pesa mais na sua obra é propriamente Freud. Propondo uma psicanálise ampliada à filosofia ou filosofia que se deixa tomar pela psicanálise, Türcke procura escavar as raízes do pensamento humano a partir do sonho enquanto resíduo da “pré-história do pensamento”. Seu método é arqueológico e estrutural (não estruturalista), ou seja, busca partir dos fatos históricos, e não da abstração metafísica, para pensar sonho, pensamento, linguagem, palavra. Aproveita o conhecimento científico da paleontologia, arqueologia e outras ciências para tentar especular acerca dos eventos que levaram à hominização como tal. Por essa razão, se tivéssemos que etiquetar em qual área está o livro, eu classificaria na antropologia filosófica.

Türcke vê na Interpretação dos Sonhos de Freud uma chave para o surgimento do pensamento. A partir das operações de condensação, deslocamento e inversão, típicas do sonho, ele identifica as raízes do processo que levou o animal humano ao seu estado atual. Para tanto, evita a definição de pulsão como “fronteira entre físico e psíquico” e se prende, ao contrário, na questão da descarga de estímulos: um organismo busca descarregar tensões. O elemento central da pulsão é, por isso, a “compulsão à repetição”, que viabiliza – mediante condensação, deslocamento e inversão – ao hominídeo amenizar o “susto da natureza”, numa espécie de domesticação pela repetição suavizadora. Assim, em sequência o “susto” é concentrado no sacrifício humano, para em seguida dirigir-se aos animais e finalmente aos seres brutos. Com essas operações, gradualmente a dimensão de pensamento – que no início é coletiva (ou melhor, o coletivo é indissociável do individual) – vai se “internalizando”, formando o “espaço mental”. Assim Türcke, um materialista convicto, define o surgimento do espírito.

Para além disso, chama atenção a capacidade de Türcke movimentar-se em todas as correntes da filosofia (em um tempo no qual basta etiquetar um rótulo – p.ex., pós-moderno – para que as discussões de dêem por encerradas), de um lado, e seu método anti-metafísico (ou anti-onto-teológico, se quiseremos assim), por outro. Evitando as abstrações, Türcke desenha um quadro filosófico completo que, se é questionável, tem o inequívoco mérito de apontar a um caminho inevitável de pesquisa em antropologia filosófica: falar do humano é sempre falar de história de algo que se fez humano, e não de um ser cuja gota divina caiu sobre sua cabeça.