Não resta dúvida que vivemos na época do declínio de toda e qualquer autoridade. De certa forma, a cultura punk mergulhou tão profundamente no nosso imaginário social que, realmente, a juventude não reconhece mais autoridades quaisquer. As demandas desesperadas do neoconservadorismo que impregna os jornais cotidianos não passam de gritos desesperados por um tempo que passou, como, aliás, é típico dos “neos” (todo “neo” traz junto consigo uma crosta de decadência). Ora, o problema aqui não é a decadência da autoridade, mas de toda e qualquer autoridade.
A Modernidade – em especial a partir daquilo que denominamos Iluminismo – é a rejeição de toda e qualquer autoridade que não a razão. Isso é bom? Parece maravilhoso. De fato, se pensarmos na sombra que lhe antecedia do dogmatismo medieval e do direito divino dos reis, foi um avanço assombroso. O problema, dito em forma coloquial, é que o Iluminismo jogou fora o bebê junto com a água suja da bacia.
Se é absolutamente legítimo pretender que toda autoridade seja fundada na razão, certo, porém, é que existe um âmbito da experiência humana que não se reduz à racionalidade calculadora típica da Modernidade desde Descartes e Leibniz. Esse âmbito poderia ser chamado simplesmente de “vida”. Ao reduzir a filosofia à epistemologia (teoria do conhecimento), a Modernidade encurtou o âmbito da experiência humana, reduzindo tudo aquilo que não tinha legitimidade epistemológica à esfera puramente subjetiva e privada (sobre o tema, autores díspares como Gadamer e Adorno estão de pleno acordo, recomendo Verdade e Método e Minima Moralia). Com isso, plantou a semente para o individualismo monádico da contemporaneidade (muitas vezes perverso e narcisista, chegando ao limite em ações como queimar um índio, bater em uma prostituta, pichar um morador de rua, espancar um “playboy”, apenas para o gozo) e a impossibilidade de se reconhecer qualquer autoridade. O punk – com toda sua ambivalência (fugindo de descrições edificantes, é preciso dizer que o punk oscila do anarquismo ao neonazismo) – é uma expressão estético-cultural desse fenômeno.
Então, relegitimar a autoridade, como defendem os neoconservadores nas suas discussões infindáveis sobre a “falta de limites” na educação? Se estivéssemos simplesmente a ratificar essa posição, estaríamos ao lado do pior do pior do reacionário no Brasil (digamos, quase nível TFP). A questão é perceber que a autoridade, como diz Gadamer, não é simplesmente a que manda, mas a que sabe mais. A autoridade não deve ser o pujante, mas o sábio. A questão é, no horizonte da nossa sociedade de espetáculo e do consumo, ainda somos capazes de produzir sábios?
Como já foi dito, ao encurtar o campo da experiência para o âmbito estrito do conhecimento e retirar qualquer saber prático do campo de legitimidade filosófica, a tradição moderno-iluminista delegou ao âmbito subjetivo – da plena liberdade no âmbito privado e tolerância no âmbito público – essa esfera de saber. (Precisaríamos de muito mais linhas para mostrar o quanto essas ideias são falaciosas e simplesmente falsas.) Com isso, produziu um declínio nesse saber que hoje se traduz na incapacidade de os sujeitos mais velhos narrarem seu conhecer por simplesmente não terem qualquer conhecer. As conquistas da geração-68, ao serem capturadas pela sociedade do espetáculo, deixaram de lado a energia utópico-messiânica para ficar apenas com a parte mais frágil: a “juventude eterna”, essa que aparece em comerciais de tinta para cabelos brancos.
O resultado disso é um conjunto de velhos ridículos, isto é, velhos que não reconhecem o valor da experiência vivida que tiveram (porque, às vezes, simplesmente não viveram, eram sonâmbulos morimbundos que apenas sobreviviam ao stress enquanto adquiriam bens de consumo) e têm como único objeto parecer jovens a partir de procedimentos cirúrgicos que apontam para o corpo como plataforma biopolítica da sociedade do espetáculo. Trata-se de uma gravíssima crise cultural, pois, pergunto, como poderiam os jovens reconhecer a autoridade (o saber mais) nesses velhos? Quando os pais querem ser iguais aos filhos, a própria noção de autoridade se implode, uma vez que só resta a figura do irmão, jamais a do pai. Como diz o amigo Luciano Mattuella em interessante artigo sobre o tema, sem a mediação de uma tradição que possa dialetizar, o sujeito contemporâneo vive em permanente desamparo.
A transformação de autoridade baseada no poder e na disciplina para a ausência total de autoridade (ou, se quisermos, da sociedade punitiva para a sociedade permissiva) levou ao modelo social em que vivemos, onde a perversidade parece ganhar ares de mal-estar similar ao que a neurose ocupava no século XIX e início do XX. Um pensamento que se preocupe em pensar a própria vida – como uma tradição filosófica jamais deixou de fazer – deve se encarregar da transformação de autoridade disciplinar para a autoridade da experiência, amparando o desorientado sujeito contemporâneo a partir do cuidado e da sabedoria.