A miscigenação das categorias da teologia, da magia, da política, do direito e da arte típica de uma certa corrente filosófica talvez seja um indício da origem comum de todas elas, quando na realidade eram indiscerníveis entre si no processo de hominização. Isso significa também que essa esfera de meios puros tem íntima conexão com a própria vida enquanto qualidade, isto é, como aquilo que suplementa a mera sobrevivência.
Se isso é verdade, Benjamin tem toda razão de reivindicar uma arte que destrua sua própria aura, ou seja, se desfaça da sua própria consagração. A visão idílica do artista que ainda é típica de certo romantismo herdeiro do “gênio” moderno e figura como risco naqueles paradigmas filosóficos (em especial os de viés mais nietzschiano) que procuram no artista o ponto de saída da totalidade ignora que a arte, ela própria, não está imune ao processo contra o qual hoje se situa como último bastião de resistência. Porém essa resistência não é protesto da arte em si mesma – a arte pela arte (lema perfeitamente conservador) – mas da vida contra os sistemas que a colonizam.
Existindo o parentesco direto entre arte, direito, política, teologia e magia – talvez tudo resumido na própria ideia de cultura – as correspondências que Agamben, por exemplo, traça entre sagrado e profano e as dinâmicas artísticas da nossa época são inteiramente procedentes. Sagrado é o objeto que é separado dos viventes, sacrificado (sacrum-facere), tornado indisponível. Profano, ao contrário, é aquele gesto que devolve aos viventes o que estava separado, permitindo então um novo uso. Segundo o autor, a tarefa política por excelência é a profanação.
Se o direito e a política (hoje encarcerada nos mitologemas do liberalismo que a juridiciza) são hoje, antes de tudo, instrumentos do poder, se o caráter de meio puro se esvaiu no instrumental traduzido na ideia de sistema (ou de “razão instrumental”, se recorrermos a outros filósofos de Frankfurt), hoje a arte parece ser o último refúgio da resistência da vida ante o poder que a aniquila. Toda arte que reserva a si própria esse nome deveria estar pronta a essa tarefa, cujos meios por óbvio não se resumem à vulgaridade do “discurso conscientizador” (que, por sinal, é igualmente um uso instrumental da arte).
Essa conclusão não nos leva, no entanto, à tranquilidade, pois sabemos que há um duplo movimento em batalha na política (isto é, na esfera das formas de vida) em relação à arte: o da estetização da política (consagração) contra a politização da arte (profanação). Benjamin traduziu essa luta no fascismo contra o comunismo, respectivamente. A estetização da política hoje é o movimento de captura das novas formas de vida pelo espetáculo, tornando aquilo que põe em jogo a própria existência mundana em algo anódino e vazio, um pastiche de si mesmo. Exatamente por isso creio que devemos recusar qualquer proposta de “reencantamento” ou “remitificação” do mundo, cujo risco é fortalecer esse movimento de consagração. Na outra ponta, a politização da arte retira da esfera do sagrado – no nosso caso, do poder – a própria vida que ele capturou, dando a ela um novo uso. Talvez não haja outra forma de pensar esse movimento de desmitificação por meio de uma razão que não se pretende mito em si própria senão de forma dialética. O que resiste ao poder, nesse caso, é a própria vida que por ele é sufocada.
A arte, por isso, não é um espaço sacro que deve ser conservado na ideia do museu. Ela é, ao contrário disso, o protesto da vida contra o poder que a captura, último foco de resistência do “espírito” contra um sistema que busca colonizar e separar a fim de servir ao poder. O artista não é o gênio, mas aquele que vive apesar de tudo.