A DOR NO LUGAR DA CERTEZA

Muito se discute sobre a polêmica afirmação de Emmanuel Levinas de que “a ética é a filosofia primeira”. Respondendo ao seu professor Heidegger, que fez questão de assenhorear a ontologia como fundamental, Levinas, testemunha das câmaras de gás e da anódina filosofia que delirava nas suas torres de marfim lógicas ou especulativas enquanto o Real acontecia de forma dilacerante (ou ainda pior: legitimava tudo isso), posiciona a ética como fundamento. Diante disso, pretendia romper com uma longa tradição de origem grega que comanda a filosofia desde o momento em que ela recebeu esse nome.

Muita incompreensão gira em torno do tema. A primeira e mais comum é analisar a questão à luz daquilo que ela visa exatamente a desbancar, isto é, a primazia do teórico-especulativo sobre o prático-concreto. Assim, se deveria provar ontologicamente que a ética vem primeiro. Evidente que essa confusão é resultado de um duplo equívoco: 1) afirmar que a ética vem primeiro não significa dizer que a ética é ontologicamente primeira, mas que há uma primazia (no sentido valorativo e em todas as consequências que isso gera) da dimensão do cuidado sobre a dimensão intelectiva, sem a qual o próprio intelecto inexistiria (no sentido básico de ética que Levinas dá ao termo); 2) a ontologia não é a realidade, mas pensamento do real, e realidade e pensamento não se confundem (aqui a centralidade do conceito de alteridade aparece). Jamais, portanto, será possível afirmar que a ética é produto do pensamento, antes o contrário: sem ética o pensamento inexistiria, não existiriam as condições onto e filogenéticas para seu surgimento.

Em todo caso, no seu mínimo denominador comum o pensamento de Levinas repete um gesto que – ele próprio admite – não é de todo inédito na história da filosofia. Ele cita, por exemplo, Platão, quando colocou o Bem acima do Ser. Mas poderíamos citar outros exemplos, em especial Marx, quando põe a transformação da sociedade como tarefa da filosofia nas Teses contra Feuerbach. Mais recentemente, contemporâneos de Levinas como Adorno, Benjamin, Horkheimer e Marcuse parecem comungar do mesmo pressuposto para compreensão do seu real intento. E – iria mais longe – mesmo filósofos distintos dele como Deleuze, Foucault e quiçá Nietzsche parecem caminhar na mesma estrada.

Não importa. O que importa, a rigor, é a substituição que a filosofia do século XX – atormentada sobretudo por Auschwitz – realiza na prática. Essa substituição consiste no primado da certeza como fundamento da verdade para que esse local seja ocupado pela dor. É a dor que ocupa o espaço fundamental de ser o próprio parâmetro do real, parâmetro que se deixa dizer na frase de que “verdadeiros são todos os pensamentos que negam a injustiça”. A dor, enquanto dilaceramento da consciência pela realidade que se nega à redução, é o ponto de arquimedes no qual se apóiam grande parte dos filósofos cuja primazia na obra é da ética, e não da ontologia. Que a ética não seja o oposto da ontologia e que inclusive permita uma ontologia é outra questão. A questão é aqui, eminentemente, de fundamento.

É com o sofrimento – aquilo que não pode ser simbolizado, assimilado, que é traumático na medida em que é inassimilável, irrepresentável – a dor profunda que dilacera o outro, o sinal da realidade do real, da sua concretude e encarnação, que se debatem os grande filósofos do século XX. Dor essa que não atravessa para além da nossa vontade, que explode a nossa consciência, que vem de um lugar estranho, desconhecido, que chega sem ser convidada, estrangeira, inóspita, cortante. Não é de outra coisa, a meu ver, que vem o sentido da expressão “ética como filosofia primeira”.

 

ALTERIDADE(S)

Um dos maiores riscos da ética da alteridade desenvolvida pelo filósofo Emmanuel Levinas é cair numa embriaguez edificante, passando de uma das mais radicais propostas de reconsideração do mundo em que vivemos a uma anódina carta de boas intenções. Se qualquer coisa é alteridade, é sinal de que algo andou errado nessa história.

Não há como não perceber que a questão da alteridade tem que ser posta ao lado da dimensão do poder. Para os intérpretes fiéis, basta lembrar algumas passagens de Levinas, dentre as quais “o humano se mostra onde não há poder” ou mesmo seus comentários em torno de Marx, quando o entrevistador, na linha edificante, chama o marxismo de “filosofia da conquista”, ao que Levinas responde com “o marxismo convida a humanidade a reclamar o que é do meu dever dar-lhe“, também na menção bíblica que identifica o Outro “no órfão, na viúva e no estrangeiro” e mesmo da sua crítica à Totalidade (que, obviamente, é uma totalidade sustentada por alguns, e não uma ordem que caiu do céu). Um breve parêntesis para afirmar o que é a alteridade: justamente a “sobra” do conceito, ou seja, a irredutibilidade do real ao pensamento, a concretude no sentido mais forte possível, a indizibilidade daquilo que não pode ser dito sem mutilar e deformar o que existe. A alteridade é o que não se diz porque não há palavras para dizê-lo (e, ao mesmo tempo, é tudo que é dito), não tanto mistério, enigma (embora Levinas já a tenha assim definido), mas mais precisamente a realidade do real, a coisa bruta, nós.

Quanto a isso, não há dúvidas de que todos têm alteridade. Mesmo um ditador cruel, um carrasco, o mais perverso dos seres, todos têm alteridade; em todos há uma dobra irredutível ao conceito, algo que escapa à teorização, no mínimo no tempo (quer dizer: na possibilidade de se tornarem algo distinto do que são). Mas – nivelando a todos dessa forma – perde-se o essencial da ética da alteridade, tornando-a uma espécie de mensagem da tolerância universal e, com isso, do conformismo, da inação, do imobilismo. Se é verdade que todos têm alteridade, é também verdade que a alteridade grita exatamente na diferença. Não são os “vencedores” da história de Benjamin que representam mais propriamente o que Levinas quis tratar como Outro, mas os “vencidos”. Outro é precisamente o resto, aqueles que aguardam a redenção na História que sequer os reconhece como personagens.

Perceba-se que a neutralidade política é arrasadora para uma ética que quer justamente olhar para aqueles que, na sua diferença (muitas vezes a diferença da miséria, p.ex.), despertam indiferença. E – se todos somos responsáveis por tudo, como bem coloca Levinas lembrando Dostoievsky – aqueles que estão ao lado da Totalidade (a ordem injusta, a violência do instituído, o fascismo que nega a diferença etc.) não representam a alteridade. Representam “o Mesmo”, não “o Outro”. Essa diferença é central.

Não é à-toa, para citar um exemplo trivial, que pensar em locais antes frequentados pela diferença (mesmo que em forma de “tribos”) mais tarde colonizados pelo mainstream da noite, ou seja, pelos idênticos e idênticas personagens que ali estão apenas porque “é moda”, é uma experiência insuportável para aqueles que procuram sair da asfixia da Totalidade (da ordem dos locais do momento, dos pontos de exibicionismo, das sedes do espetáculo e da performance). Quando o mainstream da noite – mauricinhos e patricinhas, yuppies e petecas – invade o local, é sinal de que a vida (ou seja, a chance de uma experiência diferente, nova) é imediatamente amortecida pela serialização, uniformização, pela plataforma do Mesmo. Isso não significa dizer que neles(as) há uma essência do Mesmo, mas que eles(as) agem dessa forma, proliferando, alimentando, naturalizando o Mesmo. Não há qualquer resto de singularidade por ali. A demanda dessas tribos contra a banalização dos seus espaços  não é, portanto, necessariamente uma demanda conservadora por pureza (embora possa ser), mas uma revolta contra a colonização do Outro (as novas formas de vida) pelo Mesmo (a transformação em locais de consumo e espetáculo).

Por essa razão, é preciso ter cuidado em sempre afirmar que tudo é alteridade. Se é verdade que todos têm alteridade, é também verdade que nem todos agem no sentido de reconhecer a alteridade do Outro, e muitos trabalham para a respectiva destruição. Pensar a alteridade é pensar sempre um ponto de escape dessa Totalidade que o poder constitui. A alteridade não é outra coisa, por isso, que o Ingovernável, o lugar onde o poder foi desativado e a vida pode enfim viver a experiência.