É muito cedo para traçarmos qualquer diagnóstico mais conclusivo sobre o que virá no século em que estamos. Mas os primeiros anos do século XXI parecem dar sinais.
O primeiro ponto é o esgotamento da narrativa moderna do progresso e da formalização liberal da esfera política. Por mais denegações que existam – especialmente aquelas que estabelecem teorizações abstratas sobre a política como se esta pudesse ser recriada em condições ideiais, despida de história, violência e memória – o avanço da filosofia e das ciências do século XX apontam para o esgotamento da ideia de um indivíduo autocentrado na consciência que delibera contratualmente com os demais acerca dos limites da sua liberdade que, no fundo, confunde-se com a propriedade. Todas as áreas – da história à biologia, da antropologia à psicanálise – desconfirmam essa tese. A imagem sobrevive agonizante no direito, na filosofia política e na teologia. Mas o contraste – em especial o contraste cultural e material – que a tecnologia moderna torna mais visível (e também mais invisível) mostra que mesmo o discurso dos direitos humanos (com toda lógica que lhe é implícita, em especial a do cosmopolitismo) já não soa tão convincente quanto no final da Segunda Guerra Mundial.
A teologia do mercado do final do século XX, apelidada por aqui de “neoliberalismo”, igualmente agoniza ao lado do seu rival, o “Welfare State” e todo seu caminhão burocrático. São possibilidades que implodiram a si próprias: o Welfare pela elevação da qualidade de vida que provocou revoluções culturais e insustentabilidade financeira; a teologia de mercado pela quebradeira dos últimos anos, apesar de ainda existirem “lacaios da burguesia” (expressão de Adorno que mereceria uma retomada) capazes de justificar tudo e sempre, eufemisticamente chamando de “crise” aquilo que é um evidente efeito da própria estrutura que supostamente estaria abalada.
Por fim, o “projeto Huntington” de transformar o século XXI em um “Choque de Civilizações” ruiu com as revoluções árabes desse ano, cujo teor escancarou que a representação do árabe (e em especial do islâmico) como “outro-barbáro” é uma forma de escamotear a dominação material e cultural que perdura por séculos do Ocidente em relação àquelas regiões. (Estratégia, diga-se de passagem, nada inédita.) O “Choque de Civilizações” ficou apenas para os dois pólos fanáticos, ou seja, os fundamentalistas cristãos dos EUA e os fundamentalistas islâmicos da Al-Qaeda.
O que temos, então? Acredito que vivemos uma reconfiguração da polaridade esquerda/direita. Uma das formas de visualizar as perspectivas históricas de forma mais errônea é acreditar que a história é uma linha do tempo, isto é, aquilo que está atrás foi necessariamente apagado pelo que vem na frente. Na realidade, os tempos continuam existindo, o que significa que esquerda e direita tradicionais continuam lutando nos seus mesmos termos (nos termos que, digamos, a Veja coloca a questão). Mas, ao mesmo tempo, testemunhamos a emergência de novos campos políticos, dos quais eu destacaria pelo menos três:
– O “Projeto da Direita” (falta um nome melhor), cujas estratégias são simplesmente colocar em ação todo aparato possível do estado de exceção a fim de conter os marginalizados espalhados pelo mundo, sobretudo a partir das políticas de imigração e da política criminal de encarceramento massivo, ao mesmo tempo em que garante àqueles que estão acima da linha da cidadania todas as benesses da sociedade de consumo (mantendo ambiguamente em vigor os velhos conservadorismos morais ao lado da pura performance);
– O “Projeto Chinês” (traduzido mundialmente como BRIC) – que consiste na utilização da sociedade do consumo como mecanismo inclusivo dos pobres e mantém plenamente vigente a matriz exploratório-industrialista da Modernidade como forma de reduzir a desigualdade social. Esse projeto é também tecnocrático, à medida que propõe uma despolitização geral como forma de evitar as polêmicas da Guerra Fria (da qual é herdeiro) e busca promover a transformação social a partir das próprias armas que a obstaculizam;
– O “Projeto (mas aqui “projeto” não cai bem) da Sustentabilidade”, – que engloba multiplicidade de perspectivas que se encontram no ponto em comum de propor um novo modelo de relação com o mundo, abrangendo tanto a exploração ambiental, a relação com outros viventes, a reconfiguração do espaço urbano, rediscussão da propriedade (em especial da propriedade intelectual), quesitonamento radical do utilitarismo naturalizado a partir da dádiva e a recuperação das energias revolucionárias não-violentas que se voltam contra a dominação sangrenta exercida hoje em dia (ainda que por vezes travestida – e a palavra é aqui importante – na forma da democracia liberal e do mito do contrato social).
Todos esses pólos são condensações de uma complexidade imensa. Esses são apenas alguns elementos que eu vislumbro na política do século XXI que procuram traçar um mapa do nosso cenário.