CRIMINOLOGIA DE GARAGEM # 3 – SOBRE AS MARCHAS

Enquanto o blog hiberna pela saturação de compromissos profissionais, curtam oi Criminologia de Garagem # 3 – sobre as Marchas, comigo, Salo de Carvalho e Felipe Oliveira, trilha de Beirut, Rage Against the Machine e Yeah Yeah Yeahs.

NOTAS SOBRE A MARCHA DAS PUTAS

Aconteceu no Canadá, em resposta a um policial estúpido que declarou para evitar assédios sexuais que as mulheres deveriam deixar de se vestir como “sluts” (traduzido pela grande mídia moralista como “vagabundas”, mas melhor ficaria “putas” – advertência procedente de @tuliavianna no twitter), a Marcha das Putas, que reivindica inverter o significante como estratégia de libertação sexual para as mulheres e repudio à violência. A longa história dessa relação – sexo e violência – foi entre outros trabalhada por Sigmund Freud, e talvez haja poucas tarefas mais urgentes para a política do que separar – das formas mais criativas  – as duas esferas.

No Brasil, ao contrário, predomina tanto no movimento feminista quanto no LGBTT o viés policialesco do “politicamente correto”. É verdade que Idelber Avelar, e antes dele Renato Janine Ribeiro, nos alerta que o termo faz parte do vocabulário neoconservador justamente com o intuito de inibir a discussão do ponto de vista dos “oprimidos”. Contudo, não podemos deixar de enxergar o ricochete que se produziu a partir do termo, com os movimentos aderindo ao estereótipo e reivindicando – por meio de políticas identitárias – aquilo que lhes era atribuído. Exemplo disso é a constante demanda pela utilização da violência do sistema penal – sobretudo criminalização e carcerização – por esses movimentos.

O que se perde com as políticas identitárias? Primeiro, é preciso ter prudência: ninguém melhor que Derrida soube equacionar bem que o rechaço parcial dessas demandas não pode nos levar, por exemplo, a perceber que há uma falsa simetria entre as duas partes (machista/feminista, homofóbico/ativista gay, racista/ativista negro etc.) e que portanto não podemos, desprezar de antemão tudo que vem desses grupos, mesmo aquilo a quem não estamos de acordo. Porém, como bem percebeu Bruno Cava no twitter, “quando se fecham na identidade, não se movimentam mais, fica estático e proto-fascista. Só a diferença mobiliza o desejo”. É precisamente isso: a identidade fecha novamente no próprio, reestabiliza o sujeito-como-indivíduo-mônada e repete o gesto individualista dos nossos tempos, transformando demandas de justiça em demandas corporativas.

A Marcha das Putas arromba esse horizonte à medida que transforma a luta das mulheres não apenas em luta da identidade-mulher, mas da forma-de-vida que é a raiz da injustiça que sustenta a opressão feminina, justificando das formas mais espúrias a violência por meio da misogenia e da repressão sexual. A fala do policial tem um duplo golpe cuja sutileza as mulheres canadenses perceberam em toda intensidade: defende a violência contra a mulher e, ao mesmo tempo, estimula o puritanismo que nada mais é do que capa da repressão sexual. Ao usarem o significante “puta” (“slut”) com o intuito transformador, as canadenses não apenas tocam no policial-concreto, mas na própria raiz do problema que possibilitou a esse policial dizer o que disse. Abriram, em síntese, um flanco no poder pelo qual penetrou a vida.

ROCK E REVOLUÇÕES ÁRABES

Lendo o ótimo dossiê da Revista Cult acerca dos países árabes e suas revoluções constatei em dois artigos a influência do rock (em especial do heavy metal) e do hip hop como elementos que impulsionaram a juventude dos países a lutar pela democracia e pela liberdade. Não muito diferente, aliás, do que foi o rock como força impulsionara dos movimentos do 1968 – heterogêneos entre si – mas que constituíram o último suspiro do político no século XX.

Com isso, creio que lamentáveis livros como o de Finkielkraut, no qual ataca o rock como decadência da cultura, vão parar no lugar onde deveriam estar: na prateleira dos velhos nostálgicos e rabugentos. O velho nostálgico é dono daquele cansativo mantra: “no meu tempo era melhor, agora está tudo decaído, perdido”; o velho rabugento é aquele que reclama de tudo indiscriminadamente, veiculando uma espécie de pessimismo difuso que não raro se encontra com o preconceito. Livros como o de Finkielkraut e toda turma que vê fenômenos contemporâneos como o rock e a tecnologia de ponta como sintomas de decadência terão que ser revistos imediatamente a partir das revoluções árabes, embaladas pelo rock e mediadas pelo twitter e pelo facebook.

É evidente que isso não significa, de outra mão, um otimismo tolo com relação a esses fenômenos. Como em tudo, a política está também presente tanto no rock quanto nas novas tecnologias. O rock é atravessado pela disputa entre o movimento de consagração (a separação que estetiza a política, retirando dela seu sentido vital) e o movimento de profanação (o novo uso que politiza a arte, transformando-a em forma-de-vida). De um lado, estão os defensores do cânone e os produtos da indústria do espetáculo (estes últimos provavelmente os alvos de Finkielkraut, que contudo banalizou demais as coisas até um ponto em que a indiferenciação se torna violenta e preconceituosa), que estetizam a dimensão vital do rock, transformando-o em artigo formulaico e repetitivo, ou simplesmente uma forma vazia que se vende ao lado das balas e dos chocolates. De outro, estão aqueles que buscam com o rock transtornar a ordem, invertendo o sagrado na dimensão do maldito profanado, isto é, de um maldito que não quer ser o oposto do sagrado, mas apenas desestabilizá-lo, tirá-lo da esfera separada, desfazer seu arranjo violento. Esse maldito profanado – que é a própria essência de algum heavy metal – por óbvio teve o efeito de desfazer a concentração das energias políticas do Oriente Médio na religião (que por sua vez permitiu a ascensão dos fundamentalismos) – permitindo à juventude reivindicar novos arranjos políticos. O hip hop, por outro lado, seguindo sua tradição, foi o próprio grito das vozes silenciadas, fazendo ecoar a alteridade que era sufocada pelas polícias diversas que organizavam esses países.

Espero que, diante das revoluções árabes, as críticas de certa esquerda rabugenta possam ser capazes de perceber as sutilezas desse processo, substituindo seus preconceitos de pura rabugice por uma parceira produtiva com todas as forças subversivas que possam contestar as forças que mantém a injustiça nas nossas sociedades.

CONTRA OS CHEFES, CONTRA AS OLIGARQUIAS

O nome dado ao livro com algumas entrevistas de Richard Rorty é bastante perspicaz para estabelecer algo que não está na plataforma dos governos petistas, mas que deveria ser um dos primeiros tópicos de qualquer “reforma política” que não fosse apenas uma mudança formal sem capacidade de mover o que especificamente merece ser movido.

Grande parte dos “escândalos” noticiados pela mídia envolvem o nome de Roseana Sarney. E no entanto sabemos que se trata de uma aliada do Governo Federal. Trata-se da aliança mais espúria e repugnante que o PT realizou ao longo dos últimos anos. Para mim e para tantos outros, com essa aliança o PT (enquanto projeto) simplesmente acabou. Se o Governo Dilma não fosse eminentemente uma tecnocracia de esquerda, saberia que o primeiro tema da política nacional deveria ser atacar chefes e oligarquias, dentre as quais a mais forte de todas – a Sarney.

Retomar a política não significa simplesmente se reduzir ao discurso moralista do combate à corrupção, como se tudo estivesse correto e o problema fosse do caráter individual. A corrupção no Brasil é endêmica não por ser abastecida por alguns indivíduos de correção duvidosa, mas porque ela consiste na privatização da esfera pública, ou seja, da democracia como fachada para o governo pactuado das oligarquias. Lula não tocou um dedo nisso nem parece que Dilma irá tocar. Ao contrário: ambos, aderindo a uma visão maquiavélica (no sentido técnico) de política, pactuaram com os fatores reais de poder que, como Lassalle sabia e os juristas fazem questão de esconder, são a verdadeira Constituição do nosso país.

Enfrentar as oligarquias em seu poder que produz miséria, desigualdade, violência e dominação nos lugares onde elas estão situadas significa aderir a uma política de alto nível, isto é, atacar verdadeiramente o poder que atinge nossas formas-de-vida. A luta contra a oligarquia Sarney, portanto, não é uma cruzada anticorrupção (como o jornalismo conservador gostaria de fazer crer, sacrificando um bode expiatório a fim de manter o resto como está), mas um conflito em nome da justiça para a vida nua que está sujeita ao poder descomunal de tais oligarquias, geralmente imposto com violência e não raro crueldade em seus domínios. Com isso, transformar-se-ia a “política” de baixo nível que frequenta o noticiário – a política dos acordos, das negociatas, das barganhas por cargos, das fofocas e dos diz-que-me-diz-que (o que faz o jornalismo político ser indissociável da Revista Caras) – numa verdadeira política, em que cujo centro não pode estar outra coisa se não o estado de exceção em que todos vivemos.

ANTI-ANTI-PETISMO

Uma das polêmicas mais célebres do final do século XX travou-se entre os brilhantes intelectuais norte-americanos Clifford Geertz e Richard Rorty. Geertz, rechaçando os universalismos nostálgicos que alertavam contra os “perigos do multiculturalismo”, posicionava-se como um anti-anti-relativista. Do outro lado, Rorty defendia, em resposta a essa posição, um anti-anti-etnocentrismo. A ambos incomodava sobretudo os “antis”, ou seja, aqueles que, no intuito de se posicionarem contra algo, distorcem esse algo a tal ponto que ele fica irreconhecível.

Não sou petista. Votei em Dilma no segundo turno e em Tarso Genro no primeiro não porque sou petista, mas porque não sou antipetista. A meu ver, eram os melhores candidatos nas circunstâncias. Não me identifico mais com o PT nem com seus principais políticos, nem reconheço na sua atuação grande parte do que suas plataformas têm de mais positivo e inovador. Não me sinto abrangido pelo petismo, tendo identificado alguns rastros do que eu gostaria de ver defendido na candidatura Marina Silva ao Planalto. Tento desenvolver isso aqui no blog nos últimos posts, tratando sobretudo da reconfiguração do cenário político no século XXI.

Conheço pouca gente tão chata quanto petistas dogmáticos. Detesto gente que acredita votar em um partido infalível. Detesto quem tem aquela visão fanática, caolha e cansativa que parece não ter visto os últimos 20 anos passarem. Só tem algo que detesto mais que esses petistas: os antipetistas. Nada pode ser mais burro do que aquele que se define pelo verso do outro. Nada pode ser mais entediante, previsível e anacrônico do que a retórica antipetista. Nada pode ser mais lamentável do que ver alguém que, na falta de ideias, vive traçando a caricatura do outro, atacando o outro para sobreviver. Falou que Lula é um “bêbado” ou que Dilma é “terrorista”, para mim é burro(a).

Evidente que isso não significa que a política não viva do conflito, do confronto, da oposição. É claro que sim. Porém não se trata, a rigor, de um confronto de ideias, mas sim de estereótipos, de projeções, de dramas mal-resolvidos e sobretudo de ignorância. No imaginário do antipetista, tudo que é petista é maldito, imundo, baderneiro. Portanto, para o antipetista o mundo está organizado; o petista é que quer bagunçar. Isso, evidentemente, só pode ser admissível para o conservadorismo mais atroz, haja vista que qualquer mínima sensibilidade permite perceber que o mundo em que vivemos é insuportavelmente injusto, violento e irracional. O antipetista se protege dos problemas que lhe poderiam tirar da zona de conforto por meio de uma denegação sistemática, traduzindo esse mecanismo a partir da imagem do petista baderneiro. Vive das imagens mais toscas, caricatas e dos preconceitos mais arraigados. Mantém o senso comum mais rasteiro e vulgar. Não é capaz de questionar minimamente sua doxa, reagindo com ódio e agressividade diante de todo aquele que lhe questionar. Em outras palavras, todo antipetista está muito próximo, se não coincide, com o fascista. Seu ódio é um ódio difuso e ilimitado, um ódio no fundo contra toda e qualquer possibilidade de transformação e esperança, haja vista ser ele simplesmente um poço sem fundo de medo. Todo esse medo ele projeta sobre uma única figura que serve como bode expiatório da sua projeção: o PT. Elimine-se o PT e os problemas acabam.

Isso é tão rasteiro, tão vulgar, tão incomensuravelmente simplório que só me resta me definir atualmente como um anti-anti-petista. Não me comprometo com o PT nem com suas políticas. Vejo pontos críticos nevrálgicos no “Projeto Chinês” que os Governos Lula-Dilma estão levando adiante. Porém a oposição antipetista (que não é toda oposição, mas boa parte dela) é ainda pior. Ser anti-anti-petista não é aderir ao PT, não é ratificar os absurdos que o PT pratica no poder, mas simplesmente não rejeitar a priori o PT como se ele fosse a imagem do mal sobre a Terra, como se ele fosse simplesmente aquele nome proibido que não pode ser dito – como se ele fosse um tabu. Ser anti-anti-petista é um convite, afinal, ao fim da burrice e início da política.

UM OUTRO BRASIL

Não resta dúvida que o Brasil desse início do século XXI é mais próspero do que aquele que terminou o século XX. As paranóias delirantes de sintomas autoritários e “ocupação do Estado” não passam disso: paranóias. Por outro lado, o discurso da corrupção não é forte o suficiente para colocar em xeque as mudanças atuais, cujos reflexos são sentidos por todos na melhoria das condições de vida, na existência de oportunidades, no horizonte que se avizinha. Escrever exige alguma responsabilidade e não é possível ignorar que o “projeto chinês” adotado por Lula e Dilma, com o acréscimo substancial da democracia, não é desprezível e vem produzindo muitas coisas interessantes e urgentes no cenário brasileiro. E, no entanto, é pouco.

É pouco porque é tarde demais para ele. O século XX, era do industrialismo e da social-democracia, terminou. Dele trazemos nossas melhorias tecnológicas, mas também uma enorme quantidade de lixo, usinas nucleares, armas de destruição em massa e o não-solucionado problema da pobreza: seja na falta de acesso a bens mínimos (alimentos, medicamentos, saneamento básico), seja na permanência da exclusão cultural (por falta de educação de qualidade ou pelo preconceito). É tarde demais para executar aquilo que o Brasil planejava nos anos 50: incrementar sua indústria, fortalecer o mercado interno, promover crescimento econômico. Tarde porque a Terra agoniza: a nossa casa pede a todos os seus habitantes que parem de agredi-la, que interrompam a sucção ilimitada, que não se voltem a ela como um objeto a ser dominado. É verdade que os benefícios desse processo de sucção não foram suficientemente distribuídos; que apenas alguns, na sua maioria do Atlântico Norte, usufruíram desses benefícios. Mas o problema é que não há mais tempo – é preciso conviver com a finitude – para compensações. A Terra é finita, disso podemos ter alguma certeza, apesar do obscurantismo que não raro frequenta o coração do centro de onde as principais decisões são tomadas (e onde supostamente, segundo as teorias metafísicas da política, deveriam estar os mais racionais).

Trata-se, portanto, de perceber a necessidade de uma virada. Nesse sentido, afora o arcaísmo a que alguns gostariam de retornar (por exemplo, os que desprezam a “nova classe C” porque ela deveria retorno aos morros e senzalas), disputam dois grandes projetos no Brasil: o “chinês”, capitaneado pelo PT, e algo ainda difuso, baseado na ideia de sustentabilidade, cuja força mais representativa nas eleições foi Marina Silva. Evidentemente, grande parte da esquerda não entendeu isso. Os petistas mais tacanhos não viram diferenças entre o projeto de Marina e o “neoliberalismo”. Coisa triste mesmo, e alguns foram até convidados para ocupar importantes secretarias por Dilma.

O outro projeto – aquele que gostaria de recolocar as coisas em outras posições – envolve um complexo de iniciativas que passa da educação e cultura até a economia e infraestrutura. Não é apenas um projeto de “inclusão social” baseado no trabalho e, em termos macro, no crescimento do capital nacional (PIB). É um projeto que colocaria o Brasil na vanguarda em relação aos demais países. Ele seria uma estratégia de expansão dos sistemas de educação, cultura e tecnologia voltados para a dimensão sustentável, isto é, a formação de engenheiros, químicos, físicos, biólogos etc. para pensar a produção de tecnologias nacionais limpas, baseadas, por exemplo, na energia eólica e solar. Ao mesmo tempo, poderia congregar pesquisadores das ciências humanas e da filosofia para pensar as possibilidades de criação de uma nova ética e cultura, e seus marcos jurídico e político, baseada na percepção da importância da diversidade cultural, na riqueza mestiça brasileira, nas tradições marginais negra e indígena, no repensar as relações entre o humano e demais viventes. Projeto coletivo que envolveria investimento maciço em pesquisa e educação para construir outro país. Ao mesmo tempo, uma reconfiguração das cidades baseadas numa visão mais holística, isto é, menos preocupada com questões privadas (o empresário tal quer fazer a obra tal; vamos fazer, dá empregos) e mais com uma visão total da cidade, baseada na qualidade de vida e na sustentabilidade. Isso significaria reposicionar a arquitetura urbana baseada no carro, por exemplo, e privilegiar bicicletas, metrôs e ônibus. Significa reviver a urbe aberta dos cinemas de rua em lugar das salas de shopping centers. Significa restringir condomínios fechados e arranha-céus que prejudiquem a paisagem urbana, em especial em áreas sensíveis onde há sol para todos. Atacar os focos de extrema pobreza como prioridade absoluta, dando maior qualidade de vida para quem está lá. E daí por diante. Tudo isso pressupõe o salto que mencionei em certo post: da quantidade (dos números da economia) para a qualidade (o retorno da política).

Essa reflexão vem de uma conversa com colegas de doutorado da disciplina Filosofia da Ciência, onde há uma riqueza de colegas de todas as áreas. Conversava com um colega que teve a formação de mestrado na Grã-Bretanha e Suiça em energia solar e resolveu voltar para o Brasil apesar de quatro convites de doutorado, apesar de inexistir marco regulatório para energia solar no país (em compensação, planejamos Belo Monte e usina de energia atômica na Bahia). Ao mesmo tempo, estava junto colega zoóloga que pesquisava a questão dos peixes e seus problemas com barragens. Ambos votaram em Marina. (Obviamente, quem é inteligente é capaz de perceber que esse post não é propaganda para Marina. Quem não é, bem, que fazer?)

Enfim, a euforia dos últimos tempos não deve ocultar questões importantes que se apresentam nesse século XXI. Optamos por um projeto que é, ainda, o último fôlego do século XX. Planejamos crescer em velocidade acelerada nos próximos anos para alcançar os norte-americanos e europeus. Mas por que não pensar em algo totalmente novo, algo que possa ensinar inclusive nossos vizinhos do Norte? Seria muito arriscado? Mas não é risco a única possibilidade de o Novo sobrevir? E para o novo século que inicia, novas ideias são necessárias.

A FALÊNCIA DAS INSTITUIÇÕES

Causou estranheza o penúltimo artigo, publicado na terça passada, em que Vladimir Safatle critica o STF como “casa de horrores“. Não porque o STF mereça ser consagrado, tampouco porque Safatle questiona alguns dogmas jurídicos, e muito menos porque insiste em uma “democratização” (necessária) a que o Poder Judiciário resiste. A estranheza vem da proximidade do texto com o senso comum, um certo cochilo na vigilância crítica que tem caracterizado os brilhantes artigos de Safatle.

Qual é, afinal, a inconsistência do texto? É a subestimação do fenômeno contemporâneo da moralização da política, isto é, a transformação de questões estruturais que envolvem um questionamento amplo das nossas formas-de-vida em questões individuais de caráter (em última instância: quesões disciplinares). Não importa tanto se o STF declara por razões óbvias (mas não necessariamente justas) a inconstitucionalidade da Lei do Ficha Limpa. Não me interessa, nesse momento, a discussão jurídica acerca do tema (embora haja interessantes tentativas de correção dessas distorções pela dogmática constitucional), mas a discussão propriamente política. E a “Ficha Limpa” representa, como síntese expressiva, esse perigoso movimento.

Por que Safatle subestima isso? Não sei exatamente, mas vejo a contradição no ponto em que o mesmo Judiciário criticado torna-se parte da solução: a aposta nas sentenças de primeiro grau. A rigor, considerando a prática judiciária, é indecidível saber qual é a sentença justa, a primeira ou a última (a do juiz singular ou das instâncias de Brasília). Isso nos previne de fazer aqui apologias aos recursos e chicanas processuais. Mas, por outro lado, o brete nos encaminha para uma situação em que todas as opções são inválidas. E que só consigamos pensar nessas opções é o gesto mais afirmativo que Totalidade cuja violência consiste exatamente em fornecer essas opções que estão em jogo.

A aporia me faz manter meu ceticismo em relação às instituições. Diga-se de passagem que o próprio Safatle denuncia a “juridicização da vida”. Pois é importante demarcarmos que o que Safatle mostra – como a corrupção é antidemocrática – é verdade, mas ao mesmo tempo nenhuma instituição é capaz, enquanto aparato formal que é, de promover a ética. O sonho liberal é exatamente transformar a ética em instituições e formalizações. Mas a própria vida protesta, e a ética não é senão o transcorrer da própria vida apesar do poder que tenta aprisioná-la. A ética, portanto, não virá das leis moralistas nem das formalizações jurídicas, mas da própria vida que é capturada e busca livrar-se dessa captura.

NOTAS SOBRE OS PETRALHAS

Graças a um jornalista extremamente vulgar e cujo blog é seguido por internautas ávidos de retórica histérica anti-esquerdista, popularizou-se o termo “petralhas” para chamar os adeptos do PT e, talvez, uma grande margem da esquerda. Evidentemente, os próprios petistas colaboraram para isso ao proporcionarem o espetáculo indecente do “mensalão” (uso aspas porque o termo está carregado de muita coisa que não ratifico), em especial pelas peripécias da direção da burocracia petista com suas Land Rovers e tudo que a indiferencia de toda cafonice consumista-emergente da nossa sociedade.

Provavelmente pelas estratégias retóricas sujas que o signatário do blog utiliza, inclusive usando gritos virtuais (para quem não sabe, há muito tempo é convenção na net que letras maiúsculas são gritos), muito pouca gente se deu o trabalho de investigar mais a fundo o problema. Afinal, nem todos têm estômago para isso. Aliás, podem me incluir nesse grupo. Não tenho paciência para ler esse tipo de discurso paranóico e histérico que, a rigor, é totalmente superficial e caricato e cuja popularidade se explica unicamente pelo fato de que, infelizmente, a mediocridade não é um privilégio de poucos.

Obviamente “petralha” é uma aglutinação de petista com metralha, fazendo referência aos “irmãos metralhas”, criminosos do Universo Disney cujo principal alvo é o “Tio Patinhas”. Se é isso mesmo, deveríamos então completar o díptico dos petralhas com o seu verso.   Quem é o Tio Patinhas? Um milionário cujo dinheiro está acumulado em um depósito específico e cujo característica central é a avareza, a incapacidade de – mesmo milionário – estender um único centavo para alguém. É ele que os irmãos Metralhas pretendem saquear.

Essa representação da realidade elaborada pela Disney não é a própria expressão daquilo que Max Weber chamou do “espírito do capitalismo”? Esse “ethos burguês”, consubstanciado na acumulação imotivada do dinheiro, não é exatamente aquilo que está descrito na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo? O Tio Patinhas não é quase um “tipo ideal” do burguês que acumula bens apenas por acumular, praticamente como um dever imposto de cima (de Deus), como um ideal disciplinar que regula a própria vida? Se essa hipótese é verdadeira, então conseguimos visualizar a quem realmente interessa o estigma “metralha” (ou “petralha”). É porque uma determinada revista representa hoje a defesa irrestrita desse ethos (hoje relativamente desconectado do protestantismo e mais vinculado a uma parafernália yuppie, dos discursos de “saúde”, passando pela “arte da guerra” até chegar ao discurso da tecnocrático da administração, combinação de gerencialismo com atuarialismo), que convém manter seus rivais como “metralhas”. Afinal, ela não faz nada além de defender o Tio Patinhas.

POLÍTICA DO SÉCULO XXI

É muito cedo para traçarmos qualquer diagnóstico mais conclusivo sobre o que virá no século em que estamos. Mas os primeiros anos do século XXI parecem dar sinais.

O primeiro ponto é o esgotamento da narrativa moderna do progresso e da formalização liberal da esfera política. Por mais denegações que existam – especialmente aquelas que estabelecem teorizações abstratas sobre a política como se esta pudesse ser recriada em condições ideiais, despida de história, violência e memória – o avanço da filosofia e das ciências do século XX apontam para o esgotamento da ideia de um indivíduo autocentrado na consciência que delibera contratualmente com os demais acerca dos limites da sua liberdade que, no fundo, confunde-se com a propriedade. Todas as áreas – da história à biologia, da antropologia à psicanálise – desconfirmam essa tese. A imagem sobrevive agonizante no direito, na filosofia política e na teologia. Mas o contraste – em especial o contraste cultural e material – que a tecnologia moderna torna mais visível (e também mais invisível) mostra que mesmo o discurso dos direitos humanos (com toda lógica que lhe é implícita, em especial a do cosmopolitismo) já não soa tão convincente quanto no final da Segunda Guerra Mundial.

A teologia do mercado do final do século XX, apelidada por aqui de “neoliberalismo”, igualmente agoniza ao lado do seu rival, o “Welfare State” e todo seu caminhão burocrático. São possibilidades que implodiram a si próprias: o Welfare pela elevação da qualidade de vida que provocou revoluções culturais e insustentabilidade financeira; a teologia de mercado pela quebradeira dos últimos anos, apesar de ainda existirem “lacaios da burguesia” (expressão de Adorno que mereceria uma retomada) capazes de justificar tudo e sempre, eufemisticamente chamando de “crise” aquilo que é um evidente efeito da própria estrutura que supostamente estaria abalada.

Por fim, o “projeto Huntington” de transformar o século XXI em um “Choque de Civilizações” ruiu com as revoluções árabes desse ano, cujo teor escancarou que a representação do árabe (e em especial do islâmico) como “outro-barbáro” é uma forma de escamotear a dominação material e cultural que perdura por séculos do Ocidente em relação àquelas regiões. (Estratégia, diga-se de passagem, nada inédita.) O “Choque de Civilizações” ficou apenas para os dois pólos fanáticos, ou seja, os fundamentalistas cristãos dos EUA e os fundamentalistas islâmicos da Al-Qaeda.

O que temos, então? Acredito que vivemos uma reconfiguração da polaridade esquerda/direita. Uma das formas de visualizar as perspectivas históricas de forma mais errônea é acreditar que a história é uma linha do tempo, isto é, aquilo que está atrás foi necessariamente apagado pelo que vem na frente. Na realidade, os tempos continuam existindo, o que significa que  esquerda e direita tradicionais continuam lutando nos seus mesmos termos (nos termos que, digamos, a Veja coloca a questão). Mas, ao mesmo tempo, testemunhamos a emergência de novos campos políticos, dos quais eu destacaria pelo menos três:

– O “Projeto da Direita” (falta um nome melhor), cujas estratégias são simplesmente colocar em ação todo aparato possível do estado de exceção a fim de conter os marginalizados espalhados pelo mundo, sobretudo a partir das políticas de imigração e da política criminal de encarceramento massivo, ao mesmo tempo em que garante àqueles que estão acima da linha da cidadania todas as benesses da sociedade de consumo (mantendo ambiguamente em vigor os velhos conservadorismos morais ao lado da pura performance);

– O “Projeto Chinês” (traduzido mundialmente como BRIC)  – que consiste na utilização da sociedade do consumo como mecanismo inclusivo dos pobres e mantém plenamente vigente a matriz exploratório-industrialista da Modernidade como forma de reduzir a desigualdade social. Esse projeto é também tecnocrático, à medida que propõe uma despolitização geral como forma de evitar as polêmicas da Guerra Fria (da qual é herdeiro) e busca promover a transformação social a partir das próprias armas que a obstaculizam;

– O “Projeto (mas aqui “projeto” não cai bem) da Sustentabilidade”, – que engloba  multiplicidade de perspectivas que se encontram no ponto em comum de propor um novo modelo de relação com o mundo, abrangendo tanto a exploração ambiental, a relação com outros viventes, a reconfiguração do espaço urbano, rediscussão da propriedade (em especial da propriedade intelectual), quesitonamento radical do utilitarismo naturalizado a partir da dádiva e a recuperação das energias revolucionárias não-violentas que se voltam contra a dominação sangrenta exercida hoje em dia (ainda que por vezes travestida – e a palavra é aqui importante – na forma da democracia liberal e do mito do contrato social).

Todos esses pólos são condensações de uma complexidade imensa. Esses são apenas alguns elementos que eu vislumbro na política do século XXI que procuram traçar um mapa do nosso cenário.

A WIKILEAKS E O ESTADO DE EXCEÇÃO

O fato de os Estados Unidos e outros países estarem comprando uma verdadeira guerra contra a Wikileaks, inclusive usando Cortes Marciais, acusações temerárias  e estratégias de exceção (como discutíamos no twitter @fabriciopontin, @iavelar e eu) revela que o diagnóstico prenunciado por Giorgio Agamben à época do livro “Estado de Exceção” provavelmente estava correto. Em outras palavras, a crise que se arrasta sobre os estados-nação está a indicar que a matriz oculta do poder soberano – o estado de exceção – está cada vez mais a se tornar a regra de funcionamento desses estados.

No entanto, para compreender o real porquê de Agamben estar correto é preciso desfazer algumas confusões. A principal é a interpretação do constitucionalismo contemporâneo acerca do livro mencionado (cuja influência se faz visível inclusive em julgados do Supremo Tribunal Federal, provavelmente por ricochete, ao usar a expressão do título sem que ela esteja diretamente prevista na legislação). Partindo do mitologema do contrato social típico do liberalismo político, os constitucionalistas lêem a tese como se o estado de direito consolidado estivesse cada vez mais sob ataques do estado de exceção. Tratar-se-ia, dessa forma, de “resistir” afirmando os direitos e garantias fundamentais contra o abuso de poder.

Nada menos condizente com a tese de Agamben. Para o filósofo italiano, estado de direito e estado de exceção não constituem um par de opostos, mas estão em relação complementar. Na realidade, o estado de exceção é o que precisamente sustenta o estado de direito, ainda que às vezes permaneça oculto. Se a raiz do poder soberano não é um contrato – e quanto a isso creio que basta abrir bem os olhos – o algo que sustenta até mesmo a constituição é justamente o estado de exceção. Hoje, com a crise dos estados, essa matriz oculta torna-se cada vez mais visível e pode se tornar indissociável do estado de direito. Para quem não entendeu esse ponto, recomendo a leitura de “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua”, onde Agamben literalmente desenha isso.

Por que a Wikileaks confirma a tese? Basicamente porque os estados não podem tolerar que seja mostrada a verdade acerca do seu real funcionamento – isto é, que seja tocado precisamente esse nervo mitológico que lhe dá credibilidade. Dizer a verdade acerca do estado é, em outros termos, terrorismo. Não que efetivamente essa etiqueta caiba ao caso, mas é interessante perceber que a elasticidade desse significante passou a abranger inclusive o dizer a verdade – a parrhesia. Quando esse dizer inclemente da verdade se confunde com o conceito de terror, temos um sintoma claro de que os fundamentos míticos sobre os quais estão erguidos esses monumentos civilizatórios estão abalados. E não por acaso esses estados acionam contra a Wikileaks suas defesas mais extremas, inclusive a defesa do fuzilamento. Numa época de crise na “força de lei” que sustenta os estados, é necessário apelar a todas as defesas possíveis, inclusive as mais extremas. Nesse caso, a menos que nossa consciência escape das categorias modernas, as próprias distinções esquerda/direita ou liberal/conservador podem perder o sentido, pois o que nenhuma dessas ideias identificadas com diferentes tipos de “governos” podem aceitar na Wikileaks é que ela produziu algo cujos estados não mais toleram: a política.