Lembro-me de, nos últimos dias de 2003, ter escrito um breve texto/poema (não sei exatamente o que era) no qual comemorava meu futuro desaparecimento. Lembro disso porque meu pai violentamente encontrou o texto na minha lixeira e o leu, vindo depois a me perguntar: “o que farias se fosse um pai que lesse isso escrito pelo filho?“, o que me provocou, logicamente, uma sonora indignação. Por óbvio esse intróito não é para censurar meu pai, que acertou e errou como todos os pais, mas para marcar bem o momento: eu estava finalizando a Faculdade de Direito e iria, enfim, “sumir” (viajar para a Europa de mochilão por um bom tempo). No texto, dizia algo como “vontade de sumir, mas a boa notícia é que VOU sumir”.
Vila-Matas, por essa razão, tocou em algo profundamente enraizado em mim mesmo com “Doutor Pasavento”: a vontade de desaparecer. Provavelmente pela minha personalidade depressiva (mas o que é isso, “personalidade”?), tenho uma tendência inexorável a querer simplesmente virar fumaça, evaporar, me desfazer do peso da existência. Não, por óbvio, como Hamlet em seu “ser ou não ser” (algo que o Doutor Pasavento, personagem de Vila-Matas, jamais cogita nem de perto), mas simplesmente ser como que esquecido, deixado de lado, aliviado do fardo do aparecimento. Pasavento, o personagem, também não é nada ingênuo e sabe que essa vontade está ligada igualmente a uma “afirmação do Eu”, algo que ele sempre refere como uma “relação complicada”, e realmente é. Desaparecer, aparecer, uma dialética incessante e sem fim que é a própria autoria.
“Doutor Pasavento” é, seguramente, um dos romances mais marcantes na minha vida, ao lado de “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde (o primeiro que me marcou), “Trópico de Câncer”, de Henry Miller, do poema “Uma Temporada no Inferno”, de Arthur Rimbaud, e alguns outros em menor escala.
Me senti de tal forma na angústia depressiva, paranóica e às vezes até esquizóide de Pasavento que as palavras parecem escassear na descrição dessa sensação. Nada pode dizer mais do que esse impulso benjaminiano, que Pasavento refere a partir de Robert Walser, do desaparecimento, da evasão, da fuga da realidade no seu peso dilacerante ou, para falar como outro romance que me influenciou profundamente, nauseante.
Não o brilho da glória, mas a invisibilidade da ideia – de certa forma não pode ser outra coisa que me define enquanto projeto lançado ao mundo – que Doutor Pasavento tão bem soube expressar.
Arquivo da tag: Literatura
NIKOS KAZANTZÁKS, “O CRISTO RECRUCIFICADO”
A fascinação de alguns autores contemporâneos – em especial Giorgio Agamben e Alain Badiou – pelo que se convenciona chamar de “cristianismo primitivo” (traduzido na figura de Paulo) não parece irrelevante. Contra um edifício majestoso e opulento de instituições sólidas, mas assassinas, como reagir senão com uma “grande recusa”, recuperando a promessa messiânica de um mundo totalmente outro?
O castelo que constrói Kazantzákis no seu poderoso romance é um emaranhado de cobiça, avareza, mesquinhez, descaso, mediocridade, tudo resumido na mais visível putrefação moral dos personagens (paradoxalmente chamados de “notáveis”). Nada sobra nesse mundo corrupto onde o notável recusa dar pão ao estrangeiro pelo mais puro egoísmo, quase gratuidade do mal. As pretensas “personalidades” da aldeia onde se passa o romance são figuras grotescas que parecem os juízes de Kafka a esconder revistas pornográficas em meio a livros de “doutrina”.
Nesse mundo insuportável onde o menor vestígio de resposta à hipocrisia e mediocridade é tratado como grave ofensa resta pouco da vida que merece ser vivida. Manólios e seus amigos vão buscar no ascetismo uma alternativa inicial.
Mas os estrangeiros que chegam na aldeia e passam fome precisam de ajuda – uma muito mundana ajuda – e é nesse momento que a chama da indignação e ascese do cristianismo de Manólios percebe que Cristo é o pobre que passa fome, exigindo uma justiça muito real e concreta. Não é preciso ser cristão nem acreditar em dogmas teológicos, metafísicos ou místicos para perceber aí que o cristianismo primitivo carrega uma sabedoria que obviamente incomoda o poder, pois pede justiça para o oprimido em um mundo onde essas pretensões são abafadas pela hipocrisia majestosa das instituições que a sustentam. E – de certa forma se ligando ao judaísmo – essa justiça não é um gesto de amor e perdão, mas a implacável suspensão da injustiça, ainda que a custa da violência.
Bolchevique ou cristão, não importa, Manólios é a vida nua que exclama diante da indiferença que deixa morrer. A injustiça de todos os dias e cujas instituições (pretensamente) cristãs não cansam de negar e naturalizar. Instituições que parecem ter nascido justamente para neutralizar esse potencial subversivo, indomável, desmascarador de uma fé que nasceu para recolher os restos da história e redimi-los em meio à violência onipresente, praticando uma mensagem de amor à alteridade que acabou domesticada para conservar tudo aquilo contra o qual ela lutava.