ALTERIDADE(S)

Um dos maiores riscos da ética da alteridade desenvolvida pelo filósofo Emmanuel Levinas é cair numa embriaguez edificante, passando de uma das mais radicais propostas de reconsideração do mundo em que vivemos a uma anódina carta de boas intenções. Se qualquer coisa é alteridade, é sinal de que algo andou errado nessa história.

Não há como não perceber que a questão da alteridade tem que ser posta ao lado da dimensão do poder. Para os intérpretes fiéis, basta lembrar algumas passagens de Levinas, dentre as quais “o humano se mostra onde não há poder” ou mesmo seus comentários em torno de Marx, quando o entrevistador, na linha edificante, chama o marxismo de “filosofia da conquista”, ao que Levinas responde com “o marxismo convida a humanidade a reclamar o que é do meu dever dar-lhe“, também na menção bíblica que identifica o Outro “no órfão, na viúva e no estrangeiro” e mesmo da sua crítica à Totalidade (que, obviamente, é uma totalidade sustentada por alguns, e não uma ordem que caiu do céu). Um breve parêntesis para afirmar o que é a alteridade: justamente a “sobra” do conceito, ou seja, a irredutibilidade do real ao pensamento, a concretude no sentido mais forte possível, a indizibilidade daquilo que não pode ser dito sem mutilar e deformar o que existe. A alteridade é o que não se diz porque não há palavras para dizê-lo (e, ao mesmo tempo, é tudo que é dito), não tanto mistério, enigma (embora Levinas já a tenha assim definido), mas mais precisamente a realidade do real, a coisa bruta, nós.

Quanto a isso, não há dúvidas de que todos têm alteridade. Mesmo um ditador cruel, um carrasco, o mais perverso dos seres, todos têm alteridade; em todos há uma dobra irredutível ao conceito, algo que escapa à teorização, no mínimo no tempo (quer dizer: na possibilidade de se tornarem algo distinto do que são). Mas – nivelando a todos dessa forma – perde-se o essencial da ética da alteridade, tornando-a uma espécie de mensagem da tolerância universal e, com isso, do conformismo, da inação, do imobilismo. Se é verdade que todos têm alteridade, é também verdade que a alteridade grita exatamente na diferença. Não são os “vencedores” da história de Benjamin que representam mais propriamente o que Levinas quis tratar como Outro, mas os “vencidos”. Outro é precisamente o resto, aqueles que aguardam a redenção na História que sequer os reconhece como personagens.

Perceba-se que a neutralidade política é arrasadora para uma ética que quer justamente olhar para aqueles que, na sua diferença (muitas vezes a diferença da miséria, p.ex.), despertam indiferença. E – se todos somos responsáveis por tudo, como bem coloca Levinas lembrando Dostoievsky – aqueles que estão ao lado da Totalidade (a ordem injusta, a violência do instituído, o fascismo que nega a diferença etc.) não representam a alteridade. Representam “o Mesmo”, não “o Outro”. Essa diferença é central.

Não é à-toa, para citar um exemplo trivial, que pensar em locais antes frequentados pela diferença (mesmo que em forma de “tribos”) mais tarde colonizados pelo mainstream da noite, ou seja, pelos idênticos e idênticas personagens que ali estão apenas porque “é moda”, é uma experiência insuportável para aqueles que procuram sair da asfixia da Totalidade (da ordem dos locais do momento, dos pontos de exibicionismo, das sedes do espetáculo e da performance). Quando o mainstream da noite – mauricinhos e patricinhas, yuppies e petecas – invade o local, é sinal de que a vida (ou seja, a chance de uma experiência diferente, nova) é imediatamente amortecida pela serialização, uniformização, pela plataforma do Mesmo. Isso não significa dizer que neles(as) há uma essência do Mesmo, mas que eles(as) agem dessa forma, proliferando, alimentando, naturalizando o Mesmo. Não há qualquer resto de singularidade por ali. A demanda dessas tribos contra a banalização dos seus espaços  não é, portanto, necessariamente uma demanda conservadora por pureza (embora possa ser), mas uma revolta contra a colonização do Outro (as novas formas de vida) pelo Mesmo (a transformação em locais de consumo e espetáculo).

Por essa razão, é preciso ter cuidado em sempre afirmar que tudo é alteridade. Se é verdade que todos têm alteridade, é também verdade que nem todos agem no sentido de reconhecer a alteridade do Outro, e muitos trabalham para a respectiva destruição. Pensar a alteridade é pensar sempre um ponto de escape dessa Totalidade que o poder constitui. A alteridade não é outra coisa, por isso, que o Ingovernável, o lugar onde o poder foi desativado e a vida pode enfim viver a experiência.