NA COLÔNIA PENAL

Um dos principais pontos críticos a alguns movimentos sociais ou, dizendo melhor, a alguns setores de alguns movimentos sociais é o desconhecimento completo do funcionamento da máquina punitiva e da lógica de funcionamento do sistema penal que reivindicam como elemento de emancipação social.

Somente a cegueira em torno do como funciona essa máquina pode ainda legitimar movimentos que buscam a justiça – entendida aqui simplesmente como a interrupção da violência infligida pelo poder e muitas vezes legitimada pelo direito – a acreditarem na utilização do sistema penal como mecanismo “educativo” ou algo do gênero. Só mesmo desconhecendo o efetivo atuar da máquina punitiva sobre a vida é possível ainda assim – de uma perspectiva que se considera ética – defendê-la. A ingenuidade dos que desconhecem ser a seletividade (isto é, a punição apenas aos vulneráveis ao poder punitivo) um dado inerente ao funcionamento do sistema penal é quase indecente diante de mais de 20 anos de trabalhos criminológicos acerca disso.

É verdade que é nojento, profundamente repugnante, observar como sonegadores de tributos, espancadores de mulheres e policiais torturadores – para ficar em apenas três categorias bastante representativas – se quedam realmente impunes por serem ricos, homens ou serviçais do poder. Por isso, é óbvio que essas demandas não podem ser tratadas da mesma forma que hipócritas discursos niveladores que buscam suavizar toda dureza do real com ficções jurídicas e palavreado literalmente alucinado. Elas têm um desejo de justiça importante, uma revolta contra a hipocrisia de um sistema que despeja toda sua violência sobre os marginais (estejam na posição de vítimas ou autores), aplicando seletivamente seus supostamente universais direitos e garantias.

Esses movimentos deveriam saber, no entanto, que a máquina com que estão lidando não traz qualquer possibilidade de assemelhar-se à ideia de justiça. Na realidade, a punição é provavelmente o que elide a verdadeira justiça. Tomemos um exemplo simples: o racismo. É inequívoco que milhares de pessoas praticam todos os dias atos de racismo. Mas – diante da constatação que grande parte do racismo com que convivemos é de caráter inconsciente e estrutural – não é precisamente a ideia de punição do “racista” particular o contrário disso? Para pensarmos no crime de racismo da forma como foi colocado, deveríamos partir do pressuposto de que o racismo é exceção. Mas e se o racismo for a regra, como fica a questão? Olhada do ponto de vista sociológico e até psicanalítico, o sacrifício de bodes expiatórios (os “folk devils”) é aquilo que permite dizer: “não somos racistas, ele é e está sendo punido por isso”, quando sabemos que isso não é real. Por outro lado, nenhum aparelho do Estado é mais profundamente e explicitamente racista que o sistema penal. Via de regra – o próprio caso da Massa Crítica é exemplo disso (embora não estivesse pensando nele quando escrevi): a concentração das energias de resposta à violência que cai sobre a vida no aspecto punitivo mantém a estrutura que permite a violência intacta ao custo do sacrifício de um bode expiatório. Antes de um desvio de um motorista maluco, o caso é uma imagem da própria violência no trânsito das grandes metrópoles. Ainda mais cruel do que o atropelamento dos ciclistas é saber que muitos outros motoristas se aliviam do mesmo desejo purgando sua culpa no bode expiatório sacrificado ao público. E que, se reservada à discussão exclusivamente ao aspecto punitivo, perde-se o essencial: a possibilidade de real transformação dessa paisagem urbana.

É essa mesma manobra que tem produzido a despolitização geral da sociedade, pois não é outra coisa que aqui importa senão a política, a esfera das nossas formas-de-vida: ao deslocar todo conflito político para o âmbito moral, mantemos intacta a estrutura que o sustenta, evitando o desconforto do trauma por meio da particularização para um indivíduo. O que é necessário atacar, ao contrário, não são os indivíduos particulares, em especial com a punição, mas aquilo que permite a violência do instante. Ao apostar no sistema penal nas suas funções declaradas (que esse sistema jamais cumpriu) ou simplesmente no Terror (estrutura eufemisticamente denominada “prevenção geral negativa” pela dogmática penal), está-se reproduzindo a violência que se quer erradicar, alimentando justamente a máquina de sacrifício ritual que permite ao status quo manter-se intacto. A tentativa de instrumentalização invertida do sistema penal por parte da esquerda é tão inteligente quanto uma criança brincando com uma serra elétrica ligada. O fascismo cotidiano – esse que está por trás do machismo, da homofobia, do racismo, da xenofobia, enfim, do ódio a toda diferença – deleita-se com essa máquina, se abastece constantemente dela, faz dela seu principal instrumento de prazer.

Max Horkheimer certa vez ironizou os positivistas pelo seu apego à estatística. Segundo ele, enquanto para os positivistas seria necessário o maior número possível de casos, para nós bastaria um único para mostrar a própria realidade. Tudo depende de se levar a sério essa afirmação. É preciso tomar a conflitualidade social de forma radical, isto é, vendo-a como sintoma da Totalidade que, ao fim e ao cabo, é o que ainda mutila a vida e cuja desconstrução é a tarefa de um pensamento que ainda busque a justiça.

EXPERIÊNCIA E AUTORIDADE

Não resta dúvida que vivemos na época do declínio de toda e qualquer autoridade. De certa forma, a cultura punk mergulhou tão profundamente no nosso imaginário social que, realmente, a juventude não reconhece mais autoridades quaisquer. As demandas desesperadas do neoconservadorismo que impregna os jornais cotidianos não passam de gritos desesperados por um tempo que passou, como, aliás, é típico dos “neos” (todo “neo” traz junto consigo uma crosta de decadência). Ora, o problema aqui não é a decadência da autoridade, mas de toda e qualquer autoridade.

A Modernidade – em especial a partir daquilo que denominamos Iluminismo – é a rejeição de toda e qualquer autoridade que não a razão. Isso é bom? Parece maravilhoso. De fato, se pensarmos na sombra que lhe antecedia do dogmatismo medieval e do direito divino dos reis, foi um avanço assombroso. O problema, dito em forma coloquial, é que o Iluminismo jogou fora o bebê junto com a água suja da bacia.

Se é absolutamente legítimo pretender que toda autoridade seja fundada na razão, certo, porém, é que existe um âmbito da experiência humana que não se reduz à racionalidade calculadora típica da Modernidade desde Descartes e Leibniz. Esse âmbito poderia ser chamado simplesmente de “vida”. Ao reduzir a filosofia à epistemologia (teoria do conhecimento), a Modernidade encurtou o âmbito da experiência humana, reduzindo tudo aquilo que não tinha legitimidade epistemológica à esfera puramente subjetiva e privada (sobre o tema, autores díspares como Gadamer e Adorno estão de pleno acordo, recomendo Verdade e Método e Minima Moralia). Com isso, plantou a semente para o individualismo monádico da contemporaneidade (muitas vezes perverso e narcisista, chegando ao limite em ações como queimar um índio, bater em uma prostituta, pichar um morador de rua, espancar um “playboy”, apenas para o gozo) e a impossibilidade de se reconhecer qualquer autoridade. O punk – com toda sua ambivalência (fugindo de descrições edificantes, é preciso dizer que o punk oscila do anarquismo ao neonazismo) – é uma expressão estético-cultural desse fenômeno.

Então, relegitimar a autoridade, como defendem os neoconservadores nas suas discussões infindáveis sobre a “falta de limites” na educação? Se estivéssemos simplesmente a ratificar essa posição, estaríamos ao lado do pior do pior do reacionário no Brasil (digamos, quase nível TFP). A questão é perceber que a autoridade, como diz Gadamer, não é simplesmente a que manda, mas a que sabe mais. A autoridade não deve ser o pujante, mas o sábio. A questão é, no horizonte da nossa sociedade de espetáculo e do consumo, ainda somos capazes de produzir sábios?

Como já foi dito, ao encurtar o campo da experiência para o âmbito estrito do conhecimento e retirar qualquer saber prático do campo de legitimidade filosófica, a tradição moderno-iluminista delegou ao âmbito subjetivo – da plena liberdade no âmbito privado e tolerância no âmbito público – essa esfera de saber. (Precisaríamos de muito mais linhas para mostrar o quanto essas ideias são falaciosas e simplesmente falsas.) Com isso, produziu um declínio nesse saber que hoje se traduz na incapacidade de os sujeitos mais velhos narrarem seu conhecer por simplesmente não terem qualquer conhecer. As conquistas da geração-68, ao serem capturadas pela sociedade do espetáculo, deixaram de lado a energia utópico-messiânica para ficar apenas com a parte mais frágil: a “juventude eterna”, essa que aparece em comerciais de tinta para cabelos brancos.

O resultado disso é um conjunto de velhos ridículos, isto é, velhos que não reconhecem o valor da experiência vivida que tiveram (porque, às vezes, simplesmente não viveram, eram sonâmbulos morimbundos que apenas sobreviviam ao stress enquanto adquiriam bens de consumo) e têm como único objeto parecer jovens a partir de procedimentos cirúrgicos que apontam para o corpo como plataforma biopolítica da sociedade do espetáculo. Trata-se de uma gravíssima crise cultural, pois, pergunto, como poderiam os jovens reconhecer a autoridade (o saber mais) nesses velhos? Quando os pais querem ser iguais aos filhos, a própria noção de autoridade se implode, uma vez que só resta a figura do irmão, jamais a do pai. Como diz o amigo Luciano Mattuella em interessante artigo sobre o tema, sem a mediação de uma tradição que possa dialetizar, o sujeito contemporâneo vive em permanente desamparo.

A transformação de autoridade baseada no poder e na disciplina para a ausência total de autoridade (ou, se quisermos, da sociedade punitiva para a sociedade permissiva) levou ao modelo social em que vivemos, onde a perversidade parece ganhar ares de mal-estar similar ao que a neurose ocupava no século XIX e início do XX. Um pensamento que se preocupe em pensar a própria vida – como uma tradição filosófica jamais deixou de fazer – deve se encarregar da transformação de autoridade disciplinar para a autoridade da experiência, amparando o desorientado sujeito contemporâneo a partir do cuidado e da sabedoria.

FALTA DE LIMITES?

O velho sábio não é o velho ranzinza, mas o velho contador de estórias. Sabemos disso intuitivamente e pelo trato cotidiano. O velho ranzinza não tem nada a dizer: a única coisa que sabe fazer é justamente tornar a convivência mais e mais insuportável por meio de uma infinita e implacável imposição de regras. Tudo que o velho ranzinza sabe fazer é reclamar da ausência de cumprimento dessas regras – muitas vezes contra o bom senso – e importunar pela sua efetivação. O velho contador de estórias, ao contrário, é o que geralmente gargalha diante da violação da regra, que sabe ser coisa “da idade” e engata uma curiosa estória diante da situação, tornando a convivência mais leve e agradável.

A diferença entre o velho contador de estórias e o velho ranzinza é aquela que permite afirmar ter a burguesia, nos últimos três séculos, promovido aquilo que os frankfurtianos (em especial Benjamin e Adorno) chamam do “declínio da experiência“. O que está em jogo aqui não é nada menos que a própria vida.

Gradualmente, a fonte do saber prático que Aristóteles, p.ex., chamava de phrónesis e, em termos gerais, tratarei como “sabedoria” foi se perdendo em nome da “disciplina”. Como Foucault bem percebou, a sociedade burguesa é antes de tudo uma sociedade disciplinar, em que tudo é submetido a uma série de regras. A juridicização da vida – hoje em voga pela “judicialização da política” – é na verdade um impulso muito mais antigo que consiste na formalização das esferas do viver que poderiam ser a fonte de experiências. Os modernos chamam isso de “racionalização”. De certa forma, e apesar de reconhecer a grandeza do filósofo, foi Kant quem deflagrou com maior intensidade esse fenômeno ao transformar a ética – quer dizer, a busca da felicidade (boa vida) – em deontologia – tábua de deveres. A ética kantiana é a judicialização extrema da vida, a normatização absoluta, daí a resposta mordaz e antikantiana de Nietzsche, que procurou exatamente libertar a vida de qualquer relação com a norma. Toda ética e filosofia política que se queiram chamar de “modernas” tentam exatamente normatizar a vida.

Ora, esse infinito regramento que cai sobre todas as situações é justamente aquilo que transforma a forma sadia da vida (experiência narrável) em forma danificada (disciplina). O velho burguês é o velho ranzinza, aquele que deseja disciplinar a tudo e a todos e com isso destruir a própria possibilidade da vida, que é exatamente chance de experimentar algo diferente, outro. O velho contador de estórias, ao contrário, é aquele que se preocupa menos com as regras do que com a transmissão da experiência a partir da narração, compartilhando sabedoria com os mais jovens. Todos nós já vivenciamos situações com velhos ranzinzas e velhos contadores de estórias e sabemos diferenciar ambos.

Dito isso, vem a provocação: será que não estamos errados ao tentar explicar a situação da juventude atual pela “falta de limites”? A psicanálise, p.ex, que é um discurso pautado muitas vezes pelo falocentrismo, colocando em evidência a figura do Pai, não consegue sair de uma explicação que atribui algumas facetas perversas do sujeito contemporâneo à “falta de limites” (falta de regras, de um super-ego repressor, de “autoridade”). Mas que “autoridade” é essa que falta? Não será exatamente a juventude um período inventado enquanto transgressor? Nesse caso, transformar os jovens em “indivíduos responsáveis” e daí por diante não é, em outros termos, exterminar sua juventude? A obsessão persecutória sobre os comportamentos jovens na atualidade não é, no fundo, algo policialesco que reafirma exatamente aquilo que a Geraçã0-68 conseguiu derrubar? Em termos mais diretos: não é estranho que discursos emancipatórios estejam ao lado do neoconservadorismo mais ferrenho nesses casos?

Depois de muito refletir sobre esse tema, começo a suspeitar que o problema está no foco da observação. Talvez não devêssemos atribuir as formas mais perversas da juventude de hoje em dia à “falta de limites” ou ao “narcisismo juvenil”, como eu próprio já defendi, mas a incapacidade da sociedade atual de produzir velhos sábios. Se a sabedoria é o saber prático da vida, é aquele que é experienciado e narrado enquanto tal, o declínio da experiência na sociedade burguesa pode significar, em outros termos, que o vazio não está na ausência de regras (limites), mas exatamente em se pensar a vida apenas a partir de regras, ignorando que a experiência vital é mais rica do que isso. Nesse caso, a perversidade de algumas formas é, apesar de tudo e como dizia Marcuse, um protesto com o princípio da realidade que nos comanda. Um protesto desordenado, às vezes perverso e até cruel, mas ainda assim um protesto que se traduz na absoluta transgressão de toda e qualquer norma.

Um pensamento que se pretenda relevante na sociedade do espetáculo que coloniza e empobrece drasticamente a vida deve reagir ante essa condição, apresentando não apenas a alternativa da transgressão, que mantém a norma em plena vigência como reflexo invertido, mas da desativação de toda e qualquer norma que pretenda formalizar a vida, contrapondo a ela a verdadeira experiência.