Final de semestre é sempre complicado. Enquanto não posto nada, uma palestra desses últimos tempos que coloca algumas ideias que venho defendendo.
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ENTREVISTA SOBRE POLÍTICA DE DROGAS
Para não deixar o blog totalmente parado, segue abaixo entrevista que concedi a um estudante de graduação sobre a política de drogas.
1) Segundo o seu ponto de vista, qual é a principal característica da política criminal de drogas no Brasil? É possível ver alguma evolução em relação às anteriores políticas criminais?
Principal característica é seguir a linha adotada pelos EUA desde o final da década de 70 com a War on Drugs, isto é, dar um tratamento bélico a uma questão que envolve apenas diferença cultural e política de saúde pública. Portanto, não vejo qualquer espécie de evolução, mas um massacre pleno e permanente da população pobre dos contextos urbanos que faz as drogas circularem no comércio ilegal. Sob esse ponto de vista, a política de drogas cumpre o papel de “racionalização” (no sentido freudiano) de um extermínio contínuo dos pobres dissidentes e indisciplinados mediante a atuação da polícia e no marco do estado de exceção. O filme Tropa de Elite, em particular e apesar de tudo que afirma seu diretor e outros importantes intelectuais, contribuiu para o que Walter Benjamin chamava de “estetização da guerra”, mecanismo fundamental do fascismo, legitimando as operações do BOPE e possibilitando que o senso comum convivesse pacificamente com esse genocídio em ato (como dizia há muitos anos já Eugenio Raúl Zaffaroni). Além disso, o hiperencarceramento vem diretamente da política de drogas, provocando a espiral viciosa de violência que a Criminologia identificou há mais de 30 anos.
2) Você entende que as drogas deveriam ser descriminalizadas? Seria viável a adoção dessa política-criminal no Brasil?
Sim, creio que esse é dos principais debates político-criminais que precisamos fazer. A mídia posicionou um tabu conservador e puritano que impede a discussão racional do tema, as instituições públicas não raro proíbem autoritariamente o debate (o exemplo da Marcha da Maconha é emblemático nesse sentido) e não raro os profissionais da saúde confundem os casos específicos que caem na clínica com a generalidade dos usuários, sem se dar conta que o tema atravessa uma complexidade em termos de políticas públicas que transcende a questão do vício e envolve um custo muito superior à suposta eficácia preventiva da proibição. A pergunta “o Brasil está preparado…?” é falaciosa porque pressupõe que isso envolveria a ruptura com algo que está funcionando, quando na realidade o resultado da atual política é um fracasso vertiginoso sob todos os aspectos: aumenta o consumo, desritualiza o uso, glamouriza e estigmatiza o drogado, dificulta a informação e o estudo do fenômeno, além obviamente do resultado catastrófico que mencionei como resposta à primeira questão, que é o extermínio contínuo de várias gerações de jovens pobres. Refiro-me a crianças e adolescentes de 11, 12 até 25 anos que são diariamente encarcerados ou assassinados em decorrência direta ou indireta da opção pelo proibicionismo. Sob esse ponto de vista, poderíamos ponderar se a questão principal na saúde pública deve ser a abstinência das drogas ou a adoção de outra política que evite o número insuportável de homicídios que o Brasil carrega.
3) Qual a sua posição em relação a internação compulsória de usuários?
Como não sou estudioso específico do tema, não me sinto apto a opinar. Porém vejo com alguma preocupação o fato de que não está claro para muitos profissionais da saúde que nem todo uso da droga é problemático ou, em outras palavras, que nem todo usuário é viciado. Essa distinção é fundamental, pois envolve a compreensão da diferença cultural e a desnaturalização desse ethos de desempenho típico da nossa sociedade de consumo que o usuário de drogas não necessariamente precisa compartilhar. Sem uma compreensão adequada dessa distinção, o aparelho médico tende a provocar inúmeras internações violentas e “tratamentos” que na realidade são respostas contra outras formas-de-vida.
DIREITO À INJUSTIÇA
“A horda, cujo nome sem dúvida está presente na organização da Juventude Hitlerista, não é nenhuma recaída na antiga barbárie, mas o triunfo da igualdade repressiva, a realização pelos iguais da igualdade do direito à injustiça” (ADORNO & HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 27).
Poucos filósofos fizeram uma leitura tão detalhada e multifacetada do fascismo quanto Adorno e Horkheimer. Talvez por terem vivido na carne a experiência na sua última potência, sua leitura é tão penetrante e precisa que deveria ter irrigado rios de trabalhos na reconstrução dos conceitos de democracia, sujeito, civilização e assim por diante. Essa passagem especificamente é tão diretamente nevrálgica, toca com tanta precisão o ponto central do problema, que é impossível deixar de mencioná-la.
Por que a filosofia política liberal – hegemônica desde o século XVIII – não conseguiu formar indivíduos liberais? Por que não temos o “bom senso” e a “razoabilidade” que os indivíduos contratantes do contrato social supostamente teriam? Por que não somos tolerantes e abertos, como o liberal que Rorty trata como paradigma do “melhor modelo que temos à disposição”, do “mais apto a abrir novas janelas”? Hoje temos no mundo jurídico, por exemplo, o garantismo desesperado gritando: “ei, vamos pelo menos cumprir as regras que estabelecemos, não queremos transformações ou rupturas; somos como vocês, só queremos efetivar as regras do jogo”. E, no entanto, há um sonoro e retumbante não ecoando.
Ao tratar o indivíduo como consciência pura, o liberalismo perde de foco o desejo do indivíduo. O fascista não é regrado por pactos racionais, não é educado pela lógica, não precisa mais do que uma razão vulgar para justificar – se é que é preciso justificar – suas ações. O fascista simplesmente tem um desejo de aniquilação da diferença, ele busca a igualdade plena, a uniformização completa, serialização e produção contínua de iguais. O fascismo não pode ter nascido antes da igualdade burguesa-iluminista; no período anterior, havia formas de dominação cruéis, mas não equivalentes ao fascismo. Nenhum dominador antigo ou medieval poderia admitir ser “igual” aos seus súditos; ele era aristocraticamente superior, por isso sua dominação jamais poderia ser uniformizante, a singularidade era elitista. O desejo do fascista é aniquilar toda singularidade.
Quando Benjamin afirma que onde há fascismo é porque uma revolução fracassou está dizendo que há ali um desejo de igualdade que se transforma, como Adorno & Horkheimer mostram na frase introdutória, em igualdade repressiva. Um desejo de justiça é transformado, rapidamente, na sua inversão: generalização da injustiça. É preciso que diante do fracasso da nossa capacidade de viver bem todos vivam mal, é preciso que a mal-sucedida tentativa de felicidade se transforme em infelicidade vitoriosa e geral. Se não podemos viver com singularidade, ou seja, viver, ter experiências, precisamos aniquilar toda experiência, vivendo na plenitude do abstrato que nos comanda de fora, no desejo de submissão, na disciplina que destrói a liberdade.
O fascista não tem apenas uma consciência deturpada; ele é uma consciência que se inverteu para desejar a escravidão. Saturado com a impossibilidade de realizar a felicidade terrena, vinga-se sobre aqueles que ainda a desejam, servindo com isso a um senhor visível ou invisível que lhe dá o anteparo para ação. Há imagem mais representativa disso que o momento em Z, filme de Costa-Gavras, em que brutamontes agarram e socam manifestantes pelo seu desejo de outro mundo mais racional? Não é a própria imagem daquele que luta veemente pela injustiça geral e irrestrita, pela aniquilação da singularidade, pelo abandono da libertação, pela transformação da sociedade em um lugar de medo, disciplina e desespero?
Hoje, as forças policiais espalhadas pelo mundo mais do que nunca representam o instrumento do qual se vale o poder para a manutenção da injustiça. Com poucas exceções, o policial é convictamente o agente que assegura a ordem, ainda que essa ordem seja basicamente o estado de exceção em que vivemos. É preciso que o policial saia desse papel. É preciso que a polícia, enquanto setor composto basicamente de pessoas pobres que são igualmente vítimas da injustiça generalizada, transforme esse desejo de igualdade repressiva por uma desejo de libertação, tal como ocorreu no Egito durante a queda do ditador. Com isso, os poderosos ficarão sem armas, o rei ficará nu, e a chance de superação da ordem injusta em que vivemos finalmente aparecerá.
HIPERSSOCIALIZADOS
Uma das coisas que mais me causa estranheza é a passividade com que se aceitam discursos batidos, velhos, surrados e visivelmente sem grande efeito. Não duvido que a campanha do CNJ sobre ressocialização tenha sido feita com a melhor das intenções (dessas que o Inferno está cheio), mas é evidente que ela pressupõe pelo menos três coisas difíceis de acreditar: 1) que uma pessoa possa sair do sistema carcerário – uma verdadeira rede de instituições que mais reforça do que desconstitui o status criminal, como a Criminologia não cansa de mostrar – “ressocializada”; 2) que indivíduos envolvidos, por exemplo, no tráfico de drogas, tenham interesse em ocupar papel “subalterno” que já recusaram de antemão quando entraram para a carreira criminal (diga-se de passagem que isso tem íntima conexão com a forma como o Brasil lida com certas profissões por sua estrutura Casa Grande/Senzala); e 3) que esses indivíduos sejam “pouco socializados”, ou seja, a sociedade é maravilhosamente “ordeira” e pacífica, contrastando com indivíduos em déficit que perturbam essa ordem.
Gostaria de me concentrar apenas no terceiro aspecto, e bem rapidinho. Recentemente, uma pesquisa psicológica (com todas as minhas reservas aos cognitivistas e seus métodos) verificou que o indivíduo utilitarista é praticamente ausente na sociedade, correspondendo apenas à parte dos psicopatas. Sem embarcar em todos esses rótulos, podemos perceber que o indivíduo-padrão na ciência econômica – e por isso mesmo o indivíduo-padrão imaginário da nossa sociedade (o bem sucedido!) – corresponde a um agente com baixo nível de “sentimentos morais”, frio, objetivo e calculista – o que por sua vez bate com o suposto perfil do criminoso.
Isso me leva a perguntar: será o problema do criminoso um déficit de socialização? Ou será ele apenas mais um numa sociedade em que os vínculos éticos estão destruídos? Nesse caso, que modelos propor a ele a fim de “transformá-lo”, como desejam os ressocializadores? O do “bom trabalhador”? Mas esse “bom trabalhador” é mesmo alguém valorizado e desejado nessa sociedade? Tenho minhas dúvidas se falta socialização ao criminoso ou, ao contrário, sobra.
Por essas e outras razões que sou sempre cético a esses projetos que relembram os modelos positivistas da criminologia sempre presumindo a sociedade como o bem, de um lado, e criminoso como o mal, de outro. Talvez o criminoso seja menos uma doença e mais o sintoma, menos o oposto do que a expressão de uma sociedade que prefere a hipocrisia a encarar a dureza da sua miséria.
POBREZA E CRIME: CONTESTANDO UMA FALÁCIA
Eugenio Raúl Zaffaroni, um jurista penal de muito maior coragem que o habitual dos seus colegas, declarou recentemente em entrevista que “é preciso evitar que a pobreza seja criminalizada, pois pobreza não gera crime, o que gera crimes é a falta de projetos de vida para os pobres”. Com isso, acredito que ele repetiu uma grande falácia que irei tentar combater por aqui, até como forma de homenagem a quem declarou, sem vírgulas nem reticências, que a atuação do sistema penal latino-americano é um genocídio em ato.
A frase de Zaffaroni se circunscreve a dois contextos: o primeiro, vindo a partir dos estudos de Edwin Sutherland no início do século passado, busca demonstrar que o crime é ubíquo, isto é, percorre todas as classes sociais, sendo prova disso a existência de crimes de colarinho branco ou até, p.ex., a violência doméstica; o segundo, por sua vez, são os estudos vinculados à Escola do “Realismo de Esquerda”, pragmatismo criminológico que, diante do recuo do Estado de Bem-Estar Social, fracasso do projeto da ressocialização e avanço do neoliberalismo/neoconservadorismo contemporâneo, com o “Estado Penal” correspondente, entra na defensiva tentando alterar, mediante estudos na área da segurança pública, o ethos conservador e bélico que se instalou em relação à criminalidade. Para ambos, o problema do crime não é a pobreza, pois a maioria dos pobres simplesmente não comete crimes. Resta pensar, assim, em alternativas de segurança pública e reformas sociais a longo prazo.
Ora, se esse raciocínio tem o mérito de não estigmatizar os pobres e coibir operações de extermínio geralmente promovidas por forças policiais ou grupos de extermínio nas áreas pobres (argumento usado à exaustão por Leonel Brizola na década de 90), ao mesmo tempo ressaltando que os ricos também delinquem, escamoteia um elemento fundamental: a pobreza é, sim, razão de grande parte da violência urbana que o Brasil vive.
Se, por um lado, as reformas do Estado de Bem-Estar na Europa não foram capazes de inibir o aumento dos crimes no final dos anos 70, por outro lado basta compararmos com o Brasil para constatar que a falta de reformas sociais básicas provocou um aumento de criminalidade em nível assustadoramente superior e mais letal. Ou seja, essas reformas inibiram sim grande parte dos crimes, em especial crimes violentos, nesses países. Por outro lado, basta a constatação básica acessível a qualquer para perceber que meninos de classe média e alta de 15 a 25 anos não saem por aí assaltando veículos ou ingressando nas fileiras do tráfico de drogas. Por que será? Alguns acham que por diferenças cerebrais…
Onde está, portanto, a falácia? Quando Zaffaroni diz que não é a pobreza que leva a crimes, mas a falta de projetos, não está percebendo que a pobreza é exatamente a falta de projetos. Se é verdade que a maior parte dos pobres não pratica crimes, isso não torna falso o fato de que pessoas assaltam carros, furtam carteiras e cometem latrocínios em geral por razões de pobreza. Nem todos os pobres delinquem, mas grande parte dos que delinquem o fazem por pela pobreza. “Pobreza” aqui não significa necessidade, uma vez que o dualismo necessário/supérfluo é posto totalmente em xeque na sociedade de consumo em que vivemos. Porém é evidente que há uma conexão forte entre condições sociais injustas, desiguais e miseráveis e a criminalidade urbana violenta, em especial a criminalidade contra a propriedade que, ao lado do tráfico de drogas, corresponde a mais de 60% dos encarcerados no Brasil (e deve chegar a quase 90% entre as encarceradas).
Quando a esquerda penal (se isso não é uma contradição em termos) joga todas essas questões para a segurança pública, está, consciente ou inconscientemente (e por ataque ou defesa), fazendo o jogo que a direita penal gosta de jogar. E o preço desse jogo é sempre o mesmo: o sangue dos pobres.
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CRIMINOLOGIA DE GARAGEM # 3 – SOBRE AS MARCHAS
Enquanto o blog hiberna pela saturação de compromissos profissionais, curtam oi Criminologia de Garagem # 3 – sobre as Marchas, comigo, Salo de Carvalho e Felipe Oliveira, trilha de Beirut, Rage Against the Machine e Yeah Yeah Yeahs.
CONTRA OS PARTIDOS PELA POLÍTICA (SOBRE FHC E A CRÍTICA À GUERRA ÀS DROGAS)
A maior burrice que poderíamos fazer agora seria deixar de apoiar os movimentos crescentes que Fernando Henrique Cardoso faz em direção a uma revisão da política de drogas por razões partidárias. Parece evidente que FHC está realizando um movimento estritamente político-estratégico, e não por convicção plena. Seu espírito tucano não lhe permitiria ver além do horizonte tecnocrático que caracteriza seu partido orgulhoso pelos seus “gerentes”. No intuito de reposicionar o PSDB ao centro – após a forte guinada à direita nas Eleições 2010 que levaram, por exemplo, Bresser-Pereira a deixar o partido – FHC apela a uma bandeira “liberal” e capaz de provocar estardalhaço, deixando simultaneamente ruborizados os petistas que marcaram o início da gestão de política criminal pela demissão de Pedro Abramovay. Não esqueçamos que Serra volta e meia reivindicava estar “à esquerda” do PT pelas suas posições econômicas. Na política criminal, contudo, nada poderia ser mais bizarro, à medida que é característica do PSDB exatamente a identificação com a “Tolerância Zero”, a pouca fiscalização sobre a observância dos direitos humanos pela polícia e o hiperencarceramento.
Apesar de tudo isso, FHC assumiu uma posição necessária diante de um contexto em que os discursos críticos são veementemente bloqueados, quiçá pela violência física, tal como ocorreu com a Marcha da Maconha e de todos os boçais – juristas ou não – que querem a proibir. Esses covardes que atacam a juventude descontente com o proibicionismo e seus efeitos nefastos são incapazes de agir contra o ex-Presidente, apesar de o caso ser o mesmo. É um tabu infernal cuja impossibilidade de questionar é exatamente o sintoma da sua fragilidade (como sempre, aliás). Nesse caso, a jogada política de FHC é realmente de mestre: se conseguir mudar a tendência da opinião pública, terá se recapitalizado politicamente e arremessado a esquerda para o lado conservador, impossibilitando-a de uma resposta contrária sob pena de descontentar grande parte do seu eleitorado. FHC fala a um eleitorado de perfil conservador, tendo que por vezes abrandar o discurso e repetir abobrinhas do tipo “devemos não penalizar, mas tratar o usuário” (como se todo usuário fosse usuário problemático), além de não tocar na questão essencial do tráfico, que não se resolve satisfatoriamente pela mera descriminalização do porte e uso para fins pessoais. Contudo, provoca uma rachadura nessa estrutura maciça que hoje comanda o Ocidente – a “War on Drugs” dos puritanos norte-americanos exportada para o resto do mundo. Isso já é suficiente.
Estratégia política brilhante pois coloca, como já disse, o PT numa sinuca-de-bico: ou se volta para o lado conservador, desagradando parte do seu eleitorado, ou o acompanha, recapitalizando FHC. Por que o PT caiu nessa armadilha? É simples, meus amigos: porque se comporta como a direita. No lugar de ouvir as vozes mais críticas da sociedade, questionando a fragilidade dos discursos conservadores hegemônicos, o PT se entrega permanentemente ao desejo de poder, conciliando todos os pólos numa salada cujas contradições não tardarão a aparecer. O PT é escravo da Realpolitik, do pragmatismo cujo símbolo é o PMDB. É um retrato pálido dos partidos social-democratas europeus que hoje são vaiados pela juventude do Toma La Plaza, esgotados no seu discurso envergonhado e incapazes de enfrentar o fascismo – quer dizer, de fazer política. O petismo pensa com a cabeça do século XX: é preciso imitar os social-democratas e, depois que chegarmos lá, pensamos no que vamos fazer. O PT governa para a “família brasileira” cujos preconceitos deveria democraticamente ajudar a desconstruir. É fácil, nesse caso, atacá-lo: basta usar a inteligência. E FHC não é burro. Nem nós.
QUESTÃO AMBIENTAL NÃO É SETORIAL
O pior erro que se pode cometer em pleno século XXI é acreditar que a questão ambiental é algo setorial. A mídia e quase todos os políticos brasileiros tratam a questão como se fosse “coisa de ambientalista”, como quem se barganha com um grupo corporativo. Assim, há uma suposta saudável proposta de “conciliação” entre ruralistas e ambientalistas.
A imagem está totalmente distorcida porque escamoteia as reais forças políticas que estão em jogo. Elas atravessam não apenas a questão das florestas – como está em jogo na estúpida reforma do Código Florestal – mas do próprio espaço urbano. O que está em pauta é nada menos que nossas próprias formas-de-vida e sua arquitetura fundamental.
Olhando nosso espaço urbano, há visivelmente dois modelos em oposição.
De um lado, o modelo-Dubai, baseado na construção de arranha-céus, na exibição do concreto e no carro como figura privilegiada na cidade, para a qual giram obras viárias, proliferam estacionamentos, explodem as vendas. Modelo da sociedade do espetáculo e do consumo onde a subjetividade é constituída por meio de uma produção serial em massa, forjando sua estrutura a partir de objetos exteriores e descartáveis, programados para a obsolescência quase instantânea. Formado, além disso, pelo condomínio fechado e os parques artificiais, devidamente higienizados de qualquer pobreza e hermeticamente protegidos por um aparato bélico de segurança. Modelo dos shopping certers, dos espaços “espinhosos”, das câmaras de vigilância, do modismo yuppie de caminhonetes e red bull, do marketing e da “arte de guerra” como ética. Nesse espaço retumbantemente uniforme, evidentemente a ideia é cobrir todo verde que remete ao “primitivo” de algo “produtivo”, de preferência se esse novo verde for as “verdinhas”. Asfalto ou monocultura. Nada de errado, segundo essa lógica, uma vez que ela é tauto-lógica, isto é, se retroalimenta, se justifica em si mesma: produzir é bom porque produzir é bom.
De outro lado, as tentativas de pensar o espaço urbano de forma mais coletiva e plural. Prédios menores, privilégio do sol unicamente, parques abertos, elogio da multiplicidade, espaço convidativo a ciclistas, transporte público confortável e eficiente, restrição do uso de carros, valorização dos espaços na rua para todos, convivência com a diferença. Pessoas que vivem uma vida mais leve, sem a necessidade obsessiva do enriquecimento, sem trabalhar como máquinas, priorizando suas relações de amizade e amor, interessadas no pensamento crítico, mas também na diversão hiperbólica. Convite a repensar a vida, inclusive mediante valores como a solidariedade e a justiça, ridicularizados pela hegemonia yuppie que cruelmente as associa à piedade cristã. Na área florestal, preservar a diversidade, a riqueza da diferença e do múltiplo que se fez natureza, produzir alimentos pela qualidade antes da quantidade, uma vez que o problema não é há muito tempo falta de alimentos, mas sim da sua distribuição justa. Respeito, acolhimento e aprendizado com outras formas-de-vida, por exemplo a indígena, que tanto tem a nos ensinar para quem já superou, pelo menos em certo sentido, o binômio barbárie-civilização. Hospitalidade com a alteridade que se manifesta não apenas no outro-humano, mas nos animais, nas plantas, nas coisas.
Para quem acha a distinção forçada, só posso dar a prova da minha própria experiência pessoal: conheço gente dos dois estilos, visitei lugares que espelham um e outro modelo.
Nenhuma luta é mais política que essa: luta entre formas-de-vida que são quase incompatíveis, uma vez que a vida yuppie quer cobrir de cinza o mundo para encher de verde o seu bolso. Para onde vou, percebo em todas as cidades a tendência que apenas confirma a plutocracia no lugar da democracia: governantes vendidos que autorizam obras indecentes, vendem espaços públicos, cobrem paisagens de concreto e fecham áreas que deveriam ser do coletivo, ou seja, de ninguém (exatamente isso está em jogo na questão das licenças serem transferidas para esfera do Estado-membro). A questão verde não é apenas questão de proteção da Amazônia e da preservação das baleias – é também isso – mas é a luta propriamente das formas-de-vida da nossa época.
Infelizmente o PT – partido que nos governa – ainda não achou lugar aí. Enquanto a burocracia está interessada no Modelo Chinês – crescer a qualquer custo, usando as estratégias da sociedade de consumo contra as próprias elites, mas sem enfrentamento direto – boa parte da base petista, o resíduo que ficou depois de tudo que passou, tem consciência dessas questões e pressiona internamente. É mais por cálculo maquiavélico do que por ideal que a burocracia petista ainda põe a questão. Infelizmente. De minha parte, já desisti há tempos do PT. Para quem ainda está nas tensões internas do partido, desejo que logre sucesso na empreitada de reposicionar o partido de forma a se contrapor ao projeto do concreto.
NOTAS SOBRE A MARCHA DAS PUTAS
Aconteceu no Canadá, em resposta a um policial estúpido que declarou para evitar assédios sexuais que as mulheres deveriam deixar de se vestir como “sluts” (traduzido pela grande mídia moralista como “vagabundas”, mas melhor ficaria “putas” – advertência procedente de @tuliavianna no twitter), a Marcha das Putas, que reivindica inverter o significante como estratégia de libertação sexual para as mulheres e repudio à violência. A longa história dessa relação – sexo e violência – foi entre outros trabalhada por Sigmund Freud, e talvez haja poucas tarefas mais urgentes para a política do que separar – das formas mais criativas – as duas esferas.
No Brasil, ao contrário, predomina tanto no movimento feminista quanto no LGBTT o viés policialesco do “politicamente correto”. É verdade que Idelber Avelar, e antes dele Renato Janine Ribeiro, nos alerta que o termo faz parte do vocabulário neoconservador justamente com o intuito de inibir a discussão do ponto de vista dos “oprimidos”. Contudo, não podemos deixar de enxergar o ricochete que se produziu a partir do termo, com os movimentos aderindo ao estereótipo e reivindicando – por meio de políticas identitárias – aquilo que lhes era atribuído. Exemplo disso é a constante demanda pela utilização da violência do sistema penal – sobretudo criminalização e carcerização – por esses movimentos.
O que se perde com as políticas identitárias? Primeiro, é preciso ter prudência: ninguém melhor que Derrida soube equacionar bem que o rechaço parcial dessas demandas não pode nos levar, por exemplo, a perceber que há uma falsa simetria entre as duas partes (machista/feminista, homofóbico/ativista gay, racista/ativista negro etc.) e que portanto não podemos, desprezar de antemão tudo que vem desses grupos, mesmo aquilo a quem não estamos de acordo. Porém, como bem percebeu Bruno Cava no twitter, “quando se fecham na identidade, não se movimentam mais, fica estático e proto-fascista. Só a diferença mobiliza o desejo”. É precisamente isso: a identidade fecha novamente no próprio, reestabiliza o sujeito-como-indivíduo-mônada e repete o gesto individualista dos nossos tempos, transformando demandas de justiça em demandas corporativas.
A Marcha das Putas arromba esse horizonte à medida que transforma a luta das mulheres não apenas em luta da identidade-mulher, mas da forma-de-vida que é a raiz da injustiça que sustenta a opressão feminina, justificando das formas mais espúrias a violência por meio da misogenia e da repressão sexual. A fala do policial tem um duplo golpe cuja sutileza as mulheres canadenses perceberam em toda intensidade: defende a violência contra a mulher e, ao mesmo tempo, estimula o puritanismo que nada mais é do que capa da repressão sexual. Ao usarem o significante “puta” (“slut”) com o intuito transformador, as canadenses não apenas tocam no policial-concreto, mas na própria raiz do problema que possibilitou a esse policial dizer o que disse. Abriram, em síntese, um flanco no poder pelo qual penetrou a vida.