A incompreensão do fenômeno evangélico

Uma das coisas que aprendi na academia (em especial com a antropologia) foi que toda vez que nos deparamos com uma análise de um sistema organizado de crenças que o ridiculariza como simplesmente “irracional” essa análise tende a ser simplista, etnocêntrica e no limite até racista. Lévi-Strauss e tantos outros nos ensinaram a observar “cosmologias” completamente diferentes da ocidental, tal como as ameríndias, sem cair no simplismo do evolucionismo racionalista. Ele nos ensinou a ver o mundo perspectivado, sem a necessidade de que algum ponto-mestre defina onde se demarca a área de ilusão que separa primitivos e modernos. Apesar de muita gente boa ter lido e gostar de Lévi-Strauss, acho que não estamos fazendo essa lição de casa quando se trata de analisar os evangélicos hoje em dia. A candidatura de Marina, nesse sentido, foi emblemática: a forma como muitos associaram evangélica = fundamentalista, usando Feliciano como paradigma, não é apenas equivocada, mas perigosa para nossa democracia. Explico a razão do perigo: podemos chegar a um ponto parecido com a “islamofobia”, radicalizando a ideia anti-religiosa até atingir sistemas de crença por inteiros, confundindo-os com seus pontos extremistas. O pior dessa perspectiva é sua força de “profecia-que-cumpre-a-si-mesma”: ao reforçar os pontos extremistas, igualando religião e fundamentalismo, acabamos tornando esses polos mais fortes e enfraquecendo as visões mais moderadas e ecumenistas. A compreensão que percorre boa parte da esquerda em torno dos evangélicos é tosca a ponto de reduzir tudo ao duplo “pilantragem-alienação”, sendo o intelectual, é óbvio, aquele lugar de referência que permite acessar a Verdade destituída dos seus véus de enganação. Isso gera uma incompreensão sistêmica acerca de boa parcela do povo brasileiro, no limite a evangelofobia desagua em demofobia. Não que o “povo” seja algo monolítico e unitário, antes pelo contrário. No entanto, não entender que uma parcela significativa dessa população não está simplesmente sendo “iludida” por ser “alienada” pode ser um passo adiante para entender melhor o Brasil atual.

Um dos estudos mais interessantes sobre os evangélicos está no recente trabalho de Jessé Souza, Os Batalhadores Brasileiros, no qual apresenta uma visão geral do mundo da “classe C” ou da “nova classe média” que ele, de forma muito adequada, define como “nova classe trabalhadora”. Uma classe que vive no mundo precarizado do “novo espírito do capitalismo” e precisa para sobreviver estruturar-se na “ética do trabalho duro” do mundo protestante. Ela se auto-descreve a partir dessa linguagem, considerando-se empreendedora e “chefe de si mesma”, chancelando o discurso meritocrático e considerando-se, por isso, responsável pelo próprio sucesso. Difere-se do que ele denomina, em nomenclatura que não gosto, de “ralé estrutural”, aquela parte da população em nível de subcidadania que leva uma existência desestruturada e forma os bolsões de miséria das cidades e do campo. Para Jessé, religião e família entendidas no seu sentido mais tradicional e conservador são o que dá “apoio” a essa classe batalhadora, forjando uma estrutura que permite a essas pessoas enfrentar uma rotina que combina alguns momentos de alegria e descontração com a exigência de uma forte disciplina para aguentar o ritmo de trabalho duro que é exigido. Acrescento: não é preciso ser freudiano para ver o quanto a religião ocupa, em cenários sociais completamente destituídos de laços pelas forças econômicas, uma espécie de cimento profundo que permite ao indivíduo resistir às frustrações com o que resta de esperança nesse cenário desolador. Para quem vive em locais em que as drogas, por exemplo, ocupam um papel de “escapismo” em relação ao mundo devastado a que se está sujeito, a religião pode eventualmente funcionar como uma estrutura de resistência que, com sua dimensão de transcendência, mantém sua promessa “indesconstrutível”, capacitando o indivíduo a enfrentar a situação econômica e social que o Brasil, como país profundamente injusto e desigual, lhe oferece.

Para quem trabalha com a área forense, por exemplo, é muito comum perceber que o único lugar que o aparelho de controle social admite que pobre frequente é a Igreja. Diante da devastação que o neoliberalismo e a recessão dos anos 80 e 90 causaram na periferia brasileira, deixou-se aos seus habitantes pouco mais que a opção entre a “vida loca” do tráfico e vida disciplinada da religião, extirpando quase completamente as forças subversivas da cultura do samba e os encontros entre periferia e intelectuais que formaram boa parte da cultura brasileira. Funk e hip hop são forças de exceção à regra, mas incapazes de funcionar como mais que uma alternativa restrita para aqueles que desejam uma subjetivação estetizada pela arte. A grande massa fica fora da festa, ainda que uma plataforma que estenda essas bordas seja mais que desejável. Voltando às audiências judiciais: não é difícil perceber que na quase totalidade das hipóteses o pobre ou está em casa ou na Igreja. Se disser que estava no boteco com amigos tomando cerveja, vai receber aquele olhar de soslaio reprovador que é mais ou menos o mesmo que chama Lula de “cachaceiro”, como se classe média e elite também não consumisse bebidas alcoólicas nas suas horas de descanso. Hipocrisia patente, mas quando se trata do lado mais vulnerável da pirâmide social não é fácil resistir a ela. E um ponto que indica o erro da esquerda clássica em subestimar o papel do moralismo no imaginário social e a importância que desempenha e poderia ainda mais desempenhar o significante 1968. A quantidade de proselitismo religioso a que a periferia ainda está sujeita – em programas relativos a drogas ou ao crime, p.ex. – é imensa.

Esse é um ponto, mas ainda insuficiente. Apesar de admirar muito o trabalho de Jessé, ele parece ainda cair na falsa consciência. Bem ou mal, o pentecostalismo não aparece mais que como alternativa de um “cimento” para enfrentar o trabalho duro, uma espécie de herdeiro da alienação. Predomina o enfoque vitimizador. Não há espaço para visualizar onde o pentecostalismo atua como mecanismo de subjetivação dos batalhadores que hoje são os “emergentes” (o que significa dizer: estão em alta). Para explicar esse estado de alta, precisamos escapar do enfoque reativo (com o qual estou de acordo) e ir adiante na análise.

É aqui que um texto curto, mas fortíssimo (*), do psicanalista Jurandir Freire Costa parece ajudar muito. Jurandir explica o crescimento dos evangélicos a partir da economia da dádiva. O que o pobre pode fazer nos cultos evangélicos é nada menos que infringir a maior de todas as proibições a que o pobre está sujeito: dar gratuitamente. Dar sem esperar retorno. Isto é, esbanjar. A Igreja Evangélica não apenas fala a língua da teologia da prosperidade e portanto do “novo espírito do capitalismo”, fortalecendo a subjetivação do batalhador na linguagem meritocrática compartilhada com a classe média e grande mídia, ela também é o momento que permite ao pobre gozar no luxo. Precisamos superar essa perspectiva racionalista que enxerga no dízimo apenas enganação e exploração de coitados alienados. O dízimo é um momento de luxo, de dispêndio, de excesso. O dízimo é, se me permitem o paradoxo, o que Bataille chama de “a parte maldita” dessa economia que excede o cálculo utilitarista. Em uma sociedade moralista como a brasileira, nas quais figuras como Geraldo Alckmin são reeleitas em primeiro turno justamente porque ocupa esse papel, a nova classe emergente não poderia “esbanjar” sem ser reprovada pela classe média tradicional que facilmente a etiquetaria de perdulária e indisciplinada. O culto é o momento em que esse excesso pode se realizar sem culpa, uma vez que sustentado pelo vínculo com um sistema moral tradicional – o cristianismo. A leitura de Jurandir é tão poderosa porque antevê o que os anos de prosperidade econômica de Lula consolidaram: uma classe que estava ansiosa não por entrar na disciplina utilitarista a que estava sujeita naturalmente para sobreviver à guerra de todos os dias que é a vida do pobre no Brasil, mas na economia do luxo, do dispêndio, que é exatamente o oferecido pelas religiões evangélicas e na sociedade do consumo. Recentemente se ridicularizou o Templo de Salomão e alguns informes sobre “que roupa se deveria vestir” para ir até lá. Não se está entendendo que não se trata de manipulação: ir ao Templo de Salomão é uma ocasião de luxo para o batalhador que é descarregada da sanção moralista da classe média tradicional devido à identificação cristã.

Enquanto os intelectuais não começarem a pensar essa dinâmica e melhorarmos nossa compreensão sobre esse “etograma” evangélico, vamos continuar vomitando besteiras que são mero preconceito de classe como se fosse racionalismo. E vamos continuar fortalecendo os fundamentalistas que entram na esfera pública como se fossem os únicos representantes dessa classe e dessas crenças. Investir em que procura separar Igreja e Estado, usando as tecnologias da secularização e laicidade, e despertar-se para essa economia do dispêndio na periferia pode nos fornecer pistas para uma esquerda que perceba potencialidades nos espaços subversivos que ainda são subestimados. A visão elitista com que funk e rap ainda são tratados é prova dessa subestimação. Levá-los a sério nas suas potencialidades pode ser mais que reconhecer uma “identidade cultural” diferente ou uma socialização domesticada como alternativa ao crime: pode ser, ao contrário, ampliar uma aliança imanente que libere as forças da dádiva na sociedade e em especial na periferia sem precisar do álibi moralista.       

(*) Infelizmente não encontrei mais o texto. Chamava-se algo como “As razões da irrazão” ou algo do gênero. Quem encontrar, poste aí. Deve ser de mais ou menos entre 2000 e 2002.

PS: Encontrei o texto do Jurandir Freire Costa: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/1/21/mais!/3.html

10 respostas em “A incompreensão do fenômeno evangélico

  1. Posso continuar agnóstico ?… Posso avaliar a candidata Marina ( e os demais candidatos, ( cristãos, muçulmanos ou budistas que sejam ) à luz do seu programa político adicionado ao seu percurso ídem ? …

  2. essa avaliação do papel do dízimo é externa – não internalizada, cristão não dá por luxo ou esbanjamento – 99% nem sabe o q é mais valia! n/ existe consciência crítica na economia cristã…a argumentação psicanalítica n/ se sustenta…é o olhar do outro e n/ o de dentro…pra comprovar, faça-se uma pesquisa simples, questione os porquês as ditos cujos…

  3. Gostaria de acrescentar alguns pontos importantes que devem ser considerados… O primeiro deles é o fato de que existem pastores maçons e com isso, trouxeram o conceito de “loja” para o âmbito dos templos, fomentando o consumo externo de produtos prioritariamente de “irmãos” empresários, e assim mantendo o capital girando dentro de um círculo restrito. Segundo, o poder de DOAÇÃO não está vinculado à “esbanjamento” e sim uma força colocada em movimento que, pela Lei do Retorno, é multiplicada pela reverberação dessa energia. Um profeta que se foi resumiu isso em uma simples frase: “Gentileza gera Gentileza”. Terceiro, em um mundo cada vez mais egoísta e brutal, a prática do AMOR e da solidariedade encontra boa receptividade em cidadãos e independe de grau ou qualidade de instrução.

  4. Sou protestante e de esquerda. Gostei do texto, mas, talvez pelo espaço, acho que alguns pontos poderiam ser melhor abordados. Na verdade, o “fenômeno evangélico” também deve ser entendido em sua complexidade de correntes: existem as igrejas tracionais, pentecostais e neopentecostais. As duas últimas são as maiores, além do trânsito por vezes indiscriminado entre elas. Há também a questão identitária, mais forte entre tradicionais e pentecostais, e quase ausente entre os demais (a própria IURD tem tentado afirmar essa identidade em suas propagandas: “Eu sou Universal”). Outro ponto que enriqueceria mais essa análise seria o estudo de Bourdieu em “A economia das trocas simbólicas”, em um capítulo sobre a religião. De certa forma, o texto de Costa dialoga com as ideias de Bourdieu. Teologicamente, contudo, tenho minhas discordâncias com essa ideia de “luxo”, a qual não é compartilhada por todas as correntes evangélicas, a meu ver. Enfim, texto bom, valeu a leitura!

  5. ha dois problemas graves no texto
    primeiro coloca como equivalentes todas as criticas feitas aos evangelicos, deduzindo daí que todas elas se baseiam no preconceito – por não entenderem supostamente o ponto de vista do outro.
    segundo confunde a discussao antropologica sobre entender e compreender o ponto de vista do outro – que é uma atitude metodologica – como sendo a ausencia de uma critica a toda e qualquer pratica cultural na antropologia. esta posição está longe de ser um consenso na disciplina. esta foi uma posiçao inicial classificada como relativismo cultural. nos dias de hoje a antropologia politica problematiza fortemente as desigualdades justificadas em valores culturais. e entende que valores deste tipo não tem porque continuar (como é o caso da retirada do clitoris das mulheres em muitas culturas africanas, praticas de escravidao, estupro coletivo, etc, etc, inlcuindo ai o fundamentalismo de alguns povos islamicos).
    em decorrencia disso o autor não consegue entender as criticas endereçadas as praticas fundamentalistas dos politicos evangelicos
    todas as vezes que as propostas politicas deste segmento faz da sua moral religiosa um projeto de lei a ser levada a cabo pelo estado e que ameaça a liberdade de outros grupos religiosos ou ameaça direitos individuais eles estão tendo atitudes definidas nas ciencias sociais, de forma geral incluindo a antropologia, como fundamentalistas.

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