A FALÁCIA CULTURALISTA

Samuel Huntington ficou conhecido como autor de Clash of Civilizations, o “Choque de Civilizações”. Autor identificado com os neocons norte-americanos e bastante útil como fonte na Guerra ao Terror promovida por George W. Bush, já deveria ter caído na irrelevância, não fosse certa insistência de alguns em etiquetar como “pós-moderno relativista” tudo aquilo que se opõe ao violento etnocentrismo ocidental.

Escrevo hoje (28-01) enquanto as manifestações no Egito, que seguiram a Tunísia, estão em pleno andamento. Não sei que consequências advirão. Não sei se ao ditador atual será sucessor um teocrata, tal como ocorreu no Irã. Mas não posso deixar de me posicionar sobre o assunto, pois prefiro errar, como Foucault errou, do que me proteger na casca da neutralidade que, no fundo, é a mesma da irrelevância.

O que me interessa nesse momento é desmascarar Huntington e sua tese como aquilo que o antigo marxismo chamava a mais crassa “ideologia”. Por trás de um sistema de violenta dominação do Ocidente sobre o Oriente, em especial pelos poços de petróleo e os numerosos colonialismos ao longo dos últimos séculos, a tese de que o conflito com o mundo islâmico (totalmente heterogêneo entre si) é um conflito eminentemente cultural entre o Ocidente-iluminista, defensor da democracia dos direitos humanos, e o Oriente-fundamentalista, defensor do islamismo fanático e do obscurantismo, é simplesmente uma farsa. Como podemos ver com a Tunísia e o Egito, essas populações não têm ressentimento do Ocidente apenas por divergências culturais (a religião adotada, o vestuário, os símbolos, a alimentação etc.), mas por enxergar nele o apoio a ditaduras cruéis, opressão, miséria e fome. É impossível não ligar a emergência do fundamentalismo como uma resposta (como disse certa vez Habermas) “anarco-fascista”, um grito violento de vozes silenciadas, a esse status quo mundial (do qual, a despeito da grandeza da tradição semítica, Israel faz parte enquanto Estado protagonista ). Tratar isso como se fosse um conflito estético-cultural é da profundidade de um pires, se não for simplesmente má-fé.

Não sei se haverá democracia liberal na Tunísia e no Egito depois da derrubada dos déspotas. A democracia liberal, ao contrário do que pensa uma parte da filosofia política contemporânea, é um fenômeno cultural vinculado a certo ethos em que conceitos como indivíduo, contrato, troca, direito e humano são estruturantes. Não é a única opção. A própria oposição laico/religioso merece ser posta em outros termos. (Para quem quiser mais detalhes da minha posição, pode consultar artigo sobre o tema “fundamentalismo religioso” na parte dos artigos acadêmicos.)

O certo, porém, é que a irresignação e as fontes com que se espalhou (twitter, facebook etc.) são sinal de que os tempos estão mudando e talvez haja muitos escrúpulos em percebê-lo. A influência da Wikileaks, fonte de uma cyberguerra que apenas começou, mas onde estão em jogo os principais fundamentos do status quo, representa que tais especulações não são apenas otimismo de esquerda. O fato de Julian Assange ser etiquetado como “terrorista” por mostrar a verdade (que curioso, a verdade é terror!) é, ao mesmo tempo, um mau e bom sinal. Mau, porque significa um estado de exceção em plena ativação, pronto a funcionar com todas as armas criadas pela Guerra ao Terror de Bush. Bom, por outro lado, porque significa que o nervo central dos poderes mundiais – em todas as esferas, da econômica à moral – ainda podem ser tocados e despedaçados. Recolher as vozes descontentes nesse processo não significa adotar uma idílica política do “bom selvagem”, passando a ser aliado de fundamentalistas cujas ideias são diametralmente opostas a tudo que uma esquerda gostaria de contar, mas encontrar meios e formas criativas de focalizar a energia subversiva para a vida, recuperando o espaço que antigamente se chamava de política.

 

PS: Depois de escrever esse texto e ao chegar das primeiras férias, resolvi antecipar sua publicação, uma vez que encontrei textos de Vladimir Safatle (aqui) e Slavoj Zizek (aqui) no mesmo sentido.

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